A Qualcomm anunciou no começo do ano que abrirá no Brasil o seu quarto laboratório de apps, que se somará às unidades hoje existentes nos EUA, na China e na Índia. O objetivo é transferir tecnologia para desenvolvedores, operadoras e fabricantes locais, oferecendo um ambiente propício para testes e realizando pesquisas sobre o perfil de uso de aplicativos móveis pelo consumidor brasileiro. A prioridade da empresa são apps que envolvam tecnologias de ponta, especialmente realidade aumentada, comunicação peer-to-peer para compartilhamento de conteúdo e HTML5 avançado. À frente do projeto, o diretor de desenvolvimento de negócios da Qualcomm no Brasil, Dário Dal Piaz, concedeu entrevista a Mobile Time no escritório da empresa em São Paulo para detalhar melhor como funcionará o laboratório.

Mobile Time – A Qualcomm pretende construir um laboratório de apps no Brasil. O que motivou a empresa a tomar essa iniciativa e por que escolheram o Brasil?

Dário Dal Piaz – É uma grande aposta no mercado brasileiro, cujo potencial de consumo é muito grande. É o terceiro maior mercado em receita de handsets no mundo, até pelo valor médio do device aqui. Naturalmente, é um mercado interessante para a Qualcomm. Firmamos um acordo com o Ministério das Comunicações que prevê a instalação desse laboratório.

Qual é a missão desse laboratório?

São várias missões. Uma delas é dividir com o ecossistema local conhecimento sobre desenvolvimento de aplicações. Falo de conhecimento de mercado e de cuidado com a experiência do usuário, como testes, certificação e otimização das aplicações. No exterior, fizemos a otimização do Netflix, por exemplo. Antes ele conseguia em média 7 frames por segundo no mercado norte-americano. Depois da otimização, alcançou 30 fames por segundo.

Foi a Qualcomm que fez essa otimização?

Nós fornecemos a tecnologia. Assim como faremos no mercado brasileiro.

A Netflix pagou para a Qualcomm?

Não pagou nada. A Netflix conheceu nosso projeto de otimização de apps e de vídeo streaming. O nosso processador tem uma série de características técnicas que permite que desenvolvedor tire proveito do hardware para conseguir uma performance melhor, sem prejudicar o uso em outros processadores. No caso de vídeo streaming, há APIs otimizadas para uso do GPU que podem melhorar essa experiência. Mesmo em aplicativos consolidados que trazemos para o laboratório e nos quais realizamos testes para avaliar o comportamento dos processadores percebemos às vezes que não foram utilizadas as APIs. E aí damos a dica. É um processo de transferência de tecnologia em que a Qualcomm se coloca como um conselheiro. Houve um exemplo de um app da América Latina (cujo nome Dário preferiu não revelar) que acionava a todo instante a rede para atualizar sua base de dados mesmo quando usuário estava sem crédito. O problema é que a maioria da base na América Latina é de pré-pagos. Além de degradar a bateria do usuário, o app não conseguia fazer a conexão e atrapalhava a rede da operadora, gerando congestionamento. Então explicamos para eles que na América Latina 85% da base é pré-paga e que seria melhor, portanto, não fazer a checagem a cada cinco minutos, mas deixar o usuário tomar a decisão ou, no pior dos casos, fazer um teste por dia. Otimizamos um catálogo de apps para o mercado chinês e outro pro mercado norte-americano. Há casos que se repetem.

O laboratório focará exclusivamente em aplicativos Android?

Não. Inicialmente vamos trabalhar com Android, Windows Phone e HTML5.

Quando o laboratório entra em funcionamento efetivamente e quantas pessoas vão trabalhar nele?

Já contratamos o núcleo base de três gerentes. Eles passaram por um treinamento em San Diego e agora vão passar por outros na China e na Índia, onde também temos laboratórios. A unidade brasileira fará parte da rede global de laboratórios e aplicativos da Qualcomm. Seremos compradores e vendedores de serviços. Poderemos testar aqui aplicativos da Rússia ou de outros países, de acordo com a demanda global. Ou o laboratório da Índia poderá testar um app daqui. Nesses quatro laboratórios temos mais ou menos 200 pessoas alocadas.

Mas no Brasil serão apenas esses três gerentes?

Não. Vamos contratar um conjunto de engenheiros.

Quantos serão?

Ainda não podemos divulgar. Posso dizer que o laboratório estará operacional em outubro. Até lá, somos uma start-up, comprando equipamentos, terminando a locação do espaço e treinando pessoas.

O laboratório será instalado neste mesmo prédio (o escritório da Qualcomm fica no Brooklin, em São Paulo)?

Quando estiver todo mundo a bordo a Qualcomm não caberá aqui. Teremos que procurar outro escritório maior, mas ainda não foi definido.

Que equipamentos estão comprando para o laboratório?

Não são apenas equipamentos, mas a tecnologia de testes e de desenvolvimento de aplicativos. Eu fui visitar pessoalmente os laboratórios da China e da Índia e sei que essa tecnologia que estamos trazendo não existe no Brasil. A expertise que essas pessoas terão fará a diferença para os desenvolvedores, OEMs e operadoras locais que vão usufruir desse laboratório.
Queremos que esse projeto sirva como um núcleo-base de vários laboratórios-satélites. Uma empresa de pesquisa poderá ocupar espaço próximo à gente e desfrutar dessa transferência de tecnologia. A Qualcomm está disposta a transferir tecnologia para outros players do mercado local. É uma forma de fomento do mercado. Temos uma meta de treinamento diretamente acordada com o governo brasileiro para centros de pesquisa ainda a ser definidos.
E outra missão desse laboratório é realizar a última fase de testes de um app. Hoje há simuladores, mas eles não conseguem reproduzir a carga (de conteúdo e configurações) específica de uma operadora. Um mesmo smartphone existe com a carga da Oi, da Vivo, da Claro e da TIM. Muitas vezes, dependendo do app, pode haver incompatibilidade com alguma dessas cargas. O desenvolvedor vai comprar todos os devices e todos os chips? Nossa ideia é que esse laboratório tenha o maior número de devices disponíveis para teste.

Quantos aparelhos diferentes haverá nesse laboratório?

Algo em torno de 400 modelos e cargas diferentes. Será um recurso compartilhado entre os desenvolvedores que vierem aqui testar. Será um último passo de teste gratuito. Se o desenvolvedor fizesse em outro lugar sairia muito caro. Todo o serviço do laboratório é grátis.

O que um desenvolvedor local precisará apresentar para poder usar esse laboratório?

Hoje há 25 mil desenvolvedores no mercado brasileiro que têm potencial para programar apps móveis. Para efeito de comparação, a China tem 200 mil e a Índia, 100 mil. Obviamente a Qualcomm não conseguirá prover serviços para todos eles. Por isso temos esse acordo de transferência de tecnologia (com o Ministério das Comunicações), para que outros laboratórios possam fazer esse mesmo trabalho. Faremos uma seleção de acordo com a relevância para o mercado local. Entre os critérios estão o fato de ser um projeto que interesse a uma operadora ou a um OEM locais, ou que possa virar uma referência tecnológica para o mercado usando realidade aumentada, comunicação peer-to-peer (P2P) ou HTML5 avançado. Estamos de portas abertas para conversar, mas os recursos são limitados e teremos que estabelecer prioridades.

Então as áreas de realidade aumentada, transferência P2P e HTML5 avançado são aquelas que mais interessam à Qualcomm nessa seleção de apps?

Sim. A Qualcomm fez um investimento grande no desenvolvimento de um SDK, o Vuforia, oferecido de graça para o mercado e que consiste em um kit de realidade aumentada baseada em imagem no mundo real. Várias companhias já utilizaram essa tecnologia: 1,5 mil desenvolvedores baixaram esse kit no Brasil e 26 mil no mundo inteiro. Temos 40 desenvolvedores ativos de Vuforia no Brasil, com projetos de games e publicidade com realidade aumentada.
No caso do P2P, temos a AllJoyn, uma plataforma open source, sem custo para o usuário. Com seu SDK, é possível compartilhar conteúdo diretamente via Wi-Fi ou Bluetooth, sem passar pela rede da operadora. Não requer nem roteador Wi-Fi. Isso possibilita a experiência de jogos multiplayer, por exemplo, ou redes sociais por proximidade, como o Bizaboo, que adotamos no Uplinq (evento da Qualcomm realizado em San Diego em junho passado).

A realidade aumentada visual pode substituir os QR Codes?

Acho que sim. Obviamente, o reconhecimento de um QR code exige um processamento menor. O QR code está disponível hoje até para smartphones mais simples. Já a realidade aumentada requer um smartphone de gama média para cima, porque exige um processamento mais complexo.

Existe a possibilidade de o braço de venture capital da Qualcomm investir em alguns dos desenvolvedores observados nesse laboratório?

Sim. Trabalhamos muito próximos ao braço de venture capital da Qualcomm na América Latina, que está interessados em tudo que se relaciona com desenvolvimento tecnológico dentro da área de atuação da empresa. Quando identificamos um desenvolvedor que está perto do ponto de maturação que a Qualcomm Ventures deseja, a gente lhe apresenta e então a Qualcomm Ventures procede com a sua análise. E o contrário também acontece: a Qualcomm Ventures pré-seleciona um projeto e enxerga o que a Qualcom poderia contribuir para ele. A Qualcomm Venbtures não é apenas um investidor. O investimento tem que tirar proveito do que a Qualcomm tem: suas tecnolgoais e contatos com fabricantes.

Qual é a sua avaliação do mercado brasileiro de aplicativos móveis?

Esse mercado está em estágio inicial de desenvolvimento, mas com potencial grande quando olhamos o perfil do usuário brasileiro de redes sociais, segmento em que estamos entre os mais avançados do mundo. Basta ver dados do Facebook, do antigo Orkut e agora do Pinterest. Quando se analisa o percentual de penetração desses serviços entre usuários de Internet nota-se que existe um potencial de consumo grande que pode se refletir no uso de aplicativos móveis. Mas hoje há um consumo bastante tímido de smartphone no mercado nacional, até comparativamente com outros mercados emergentes, como Rússia e China. No Brasil, temos 14% de penetração de smartphones, contra 22% no México, que é um mercado similar, na mesma região e com o mesmo perfil de consumidor.

O que você chama de smartphone?

Smartphone é um telefone com a capacidade de fazer mais de uma tarefa ao mesmo tempo e que tem uma capacidade de transmissão de dados que permite uma série de aplicações simultâneas. Existem webphones, mas não estamos considerando-os nessa conta, porque a experiência do usuário com eles é prejudicada pela questão da conexão.

Então para a Qualcomm a conexão 3G é uma condição essencial para um telefone ser considerado um smartphone?

A definição de smartphone é quase pessoal. Nossa visão é que o telefone precisa ter multiprocessamento e capacidade de entregar essa conexão com a rede móvel a uma velocidade satisfatória. Então, se é 3G e multitarefa, é um smartphone. Essa é a definição com a qual trabalhamos.
Voltando à análise inicial, as vendas de smartphones cresceram bastante. Agora já são 20% do total no Brasil. Mesmo com a pequena penetração de 14%, o usuário tem demonstrado um volume crescente de uso de aplicativos. Antigamente era só jogo, email e rede social. Agora há aplicações mais diversas, como mobile commerce. Tem gente comprando direto pelo celualr, inclusive demonstrando uma confiança maior na rede móvel que na rede fixa. Coisas que usuários mais céticos não faziam antigamente no computador agora são feitas no celular, porque as pessoas o consideram mais seguro do que um computador que não conhecem. A relação com o telefone é diferente. Ele dorme do seu lado todo dia, te acompanha no banheiro. A confiabilidade é diferente.
As ações que a Qualcomm, as empresas e o governo estão tomando levam a crer que teremos uma grande explosão de vendas de smartphones. Há operadoras na Argentina que já têm volume de 80% de smartphones em suas vendas. Acreditamos que isso seja possível no Brasil em um curto espaço de tempo. A redução de impostos sobre produção de smartphones deve dar um novo gás para o mercado. Paralelamente, as operadoras e os OEMs locais já tomaram a consciência de que são os apps que vendem o smartphone. Gradativamente veremos operadoras embarcarem cada vez mais apps nos seus smartphones. Os próprios OEMs também. Nesse laboratório que criamos temos uma seleção de 44 apps que sugerimos para as operadioras e para os OEMs no Brasil. São divididos em 26 categorias. São apps Android e HTML5.

Pode dar alguns exemplos de apps que fazem parte dessa seleção?

Essa primeira seleção foi feita com base na nossa própria visão e conhecimento do mercado. A partir de setembro, a seleção será embasada em cima de uma pesquisa que conduziremos sobre o mercado local. Vamos trazer um componente mais científico para a seleção de apps. Nessa primeira lista não tem nenhuma novidade. São alguns jogos, alguns e-readers, como o da Saraiva e o da Livraria Cultura. Há apps de música, de procura de imagens, comunicadores, redes sociais… 

Além de identificar os apps mais populares no Brasil, qual será o objetivo dessa pesquisa em setembro?

Entender em profundidade os hábitos de consumo de aplicativos e entender qual é o momento do mercado brasileiro. Na China, os aparelhos high end são entregues com aproximadamente 100 apps pré-embarcados. Um smartphone entry level vem com cerca de 50 títulos.

Na sua opinião, os aplicativos embarcados de fábrica podem ser um diferencial para operadoras e fabricantes?

Seguramente. É o que vimos em vários mercados do mundo.

Acredita em um modelo de aplicativos exclusivos para uma operadora ou um fabricante?

Existe a diferenciação vertical e a horizontal. Pode haver uma diferenciação em categorias de apps, por exemplo. Trazer para o mercado uma categoria de app que ainda não existe é um caminho. Outro é criar ferramentas exclusivas para o cliente da operadora ou do fabricante dentro de aplicativos já existentes. Isso faz parte da agenda das principais operadoras e OEMs do mundo. 

A operadora teria então um papel de curadora? Há lojas de apps com 500 mil títulos e os usuários muitas vezes ficam perdidos…

A relação que o usuário tem com a operadora é de confiança. Uma pré-seleção de uma operadora é algo relevante para o consumidor. E para a operadora o aplicativo é um marketplace, uma nova forma de relacionamento comercial com o usuário.

O que houve com aquela proposta da Qualcomm de oferecer uma plataforma para que as operadoras criassem suas próprias lojas de aplicativos, a Plaza? Não foi para frente?

A Qualcomm fez esse movimento de montar lojas de aplicativos, principalmente em Java, para operadoras, como forma de estímulo desse mercado. A partir do momento em que há uma explosão de diferentes app stores e o mercado se tornou sólido, a Qualcomm não vê mais necessidade de atuar dessa maneira. Agora, o que faremos no Brasil é essa pesquisa de mercado para compartilhar com teles e OEMs, além de dar nossas sugestões de apps a serem pré-carregados. E vamos certificar esses apps: eles serão testados no nosso laboratório, para ter certeza que não têm bugs, que não consomem bateria demais ou memória demais, nem vazamento de dados etc. Existe um conjunto de testes que a Qualcomm executa para que esse app esteja pronto para ser recomendado por um OEM. Isso está sendo feito na China, na Índia e nos EUA. E é uma das missões do nosso laboratório brasileiro. Vamos selecionar alguns apps e realizar os testes.  O processo de certificação, contudo, não será feito pela Qualcomm, mas por laboratórios parceiros, cumprindo uma agenda de testes definida pela Qualcomm. Esse trabalho de testes não implicará em custos para a operadora ou para o OEM. Nem o desenvolvedor precisará pagar. É um custo que a Qualcomm vai assumir, como forma de fomento do mercado. Assim como fizemos lá atrás oferecendo lojas de aplicativos quando elas não existiam.

Que modelo de negócios é mais propício para o mercado nacional de apps: publicidade, freemium, venda de downloads ou assinatura? Por quê?

Não tem um modelo que sirva para todos os apps. O modelo de publicidade ainda é um pouco fraco no Brasil, porque não tem escala. Isso deve melhorar quando tivermos uma massa de smartphones mais significativa. Quanto à venda direta de aplicativos: somente 15% dos títulos da loja de apps mais popular do momento são vendidos. 85% são gratuitos ou adotam o modelo freemium, que é a grande tendência globalmente, pois se adequa melhor ao perfil médio do consumidor de aplicações, não apenas o brasileiro. E temos percebido que quanto mais o desenvolvedor abre de graça do seu aplicativo, maior a chance de vender alguma coisa. O desenvolvedor brasileiro precisa ter calma. Tem que entender que o momento do mercado é esse. Temos um mundo off-line muito grande no Brasil, que está migrando para o mundo online. E há a migração do online para o móvel.
Vejo que prestação de serviços por apps, como cursos online de inglês ou até cursos relacionados à tecnologia têm tido aderência de mercado. Pessoas pagam R$ 15 a R$ 30 para ter acesso a esses conteúdos.
Na China, maior mercado de apps do mundo, ainda há essa questão sobre rentabilização e não há um modelo único. É um ajuste fino que cada desenvolvedor tem que ter. O desenvolvedor não pode ter só o conhecimento técnico, a capacidade de programação. Ele precisa ser um empreendedor. Tem que ser uma pessoa de negócios. Tem que enxergar o consumidor.

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Dário Dal Piaz participará no dia 25 de setembro do 5º Forum Mobile+, organizado pela Converge Comunicações, em um painel sobre o impacto da chegada do 4G e da popularização de tablets em ambientes corporativos. Antes disso, participará nos dias 22 e 23 de agosto do IQ 2012, conferência internacional da Qualcomm que este ano será sediada em São Paulo.