Presentes há anos na navegação na web através de desktops, os bloqueadores de anúncios (ou adblockers, em inglês) chegaram ao mundo móvel. E quem promoveu essa entrada foi a Apple, ao incluir entre as novidades do iOS 9 a possibilidade de bloqueio de anúncios dentro do seu navegador oficial, o Safari. Resultado: em menos de um mês após o lançamento da nova versão do seu sistema operacional, ocorrida em 16 de setembro, os adblockers invadiram a App Store como um tsunami. Nos primeiros dias após o lançamento do iOS 9, alguns chegaram a figurar entre os títulos mais baixados no ranking de apps pagos dos EUA. O frenesi parece ter diminuído um pouco de lá para cá: hoje o adblocker pago mais bem posicionado está na 26ª colocação. Mas o debate provocado pela novidade está longe de ter se esgotado e pode direcionar mudanças profundas no futuro da indústria de conteúdo móvel, especialmente nos segmentos de notícias e de publicidade móvel, que são os mais afetados. MOBILE TIME publica nesta quarta-feira, 14, um conjunto de três matérias sobre o tema, incluindo a repercussão no Brasil.

Em uma contagem nesta data, MOBILE TIME identificou pelo menos 77 bloqueadores disponíveis para iPhone na loja de aplicativos da Apple e nove na Google Play. As técnicas usadas para o bloqueio variam. A grande maioria utiliza a ferramenta oferecida pela Apple para bloqueio de anúncios dentro do Safari. Há também navegadores independentes, como o Ghostery, que bloqueiam por conta própria a exibição de anúncios. O bloqueio feito nos navegadores se restringe aos banners exibidos em sites móveis. Isso é feito a partir da identificação de espaços na página cujo conteúdo é puxado de servidores publicitários externos. Se a propaganda for nativa, ou seja, entregue pelo próprio provedor do conteúdo, seja via um adserver próprio ou como parte do código HTML da página em si, ela não é identificada por esses bloqueadores.

Os adblockers para navegação em sites não dão conta dos anúncios servidos dentro de aplicativos. E é justamente dentro de apps que o usuário móvel passa a maior parte do seu tempo. É lá, portanto, que se encontra a maior parte da receita com publicidade móvel. Contudo, há soluções técnicas para bloquear esses anúncios também. Uma delas é criar uma VPN (virtual private network), uma espécie de túnel pelo qual passaria todo o tráfego demandado e enviado pelo smartphone. Com o controle desse túnel, é possível também impedir a entrega de publicidade. O problema é que a navegação toda fica mais lenta. Pelo menos um bloqueador para iOS tentou esse caminho, o Been Choice. Mas depois de ficar no ar por poucos dias foi retirado da loja pela Apple com o argumento de que abriria brecha para ataques do tipo "man in the middle". Em Android, um bloqueador chamado Block This afirma que consegue bloquear anúncios dentro de apps através da reconfiguração do DNS. Também é possível bloquear os servidores de anúncios na camada da rede, alternativa que somente as operadoras conseguiriam adotar. Há poucas semanas a caribenha Digicel ameaçou fazer isso, alegando que a publicidade seria responsável por uma parcela significativa do seu tráfego. A medida, contudo, fere o conceito de neutralidade de rede.

O grau de personalização dos adblockers também varia. Alguns oferecem mais ou menos flexibilidade para o usuário escolher o que deseja ou não bloquear.

Ainda não está claro qual será o modelo de negócios predominante entre os adblockers. Muitos deles são pagos, com preços variando entre US$ 0,99 e US$ 1,99. Outros são gratuitos e se monetizam de maneiras variadas, desde o uso dos dados coletados para pesquisas, como faz o Ghostery, até simplesmente o reconhecimento de marca para a venda de outros apps, como é o caso do F-Secure Adblocker.

White List

Um dos adblockers mais conhecidos, porém, é ao mesmo tempo aquele com o modelo de negócios mais polêmico: o Adblock Plus (ABP). Ele estabeleceu alguns critérios para definir o que seriam formatos de anúncios "aceitáveis". A lista é extensa e inclui as seguintes regras: o anúncio deve ser estático (não pode conter animações); preferencialmente ser em texto (imagens muito chamativas não são aceitas); não pode cobrir o conteúdo da página; os espaços publicitários devem ser identificados como tais; além de uma série de limitações de espaço. Porém, não basta se encaixar nessas regras para o anúncio ser liberado. Alegando não ser possível tecnicamente bloquear somente aqueles que ferem tais critérios, a Eyeo, empresa por trás do ABP, firma parcerias com servidores de publicidade para que se adequem às regras e tenham seus anúncios liberados em troca de um pagamento. É daí que vem a receita do adblocker. Funciona como uma "white list": quem paga e se adequa às regras têm o anúncio liberado. Segundo o Wall Street Journal, o Crystal, outro bloqueador de sucesso para iOS, teria fechado um acordo com a Eyeo para adotar a mesma política.

O modelo de negócios do ABP é criticado por diversas fontes. "Parece uma máfia digital: crio um serviço para bloquear anúncios, mas libero para as marcas que me pagarem", compara Patrícia Peck, advogada especializada em direito digital. "Esse tipo de bloqueador poderia ser enquadrado até como propaganda enganosa pelo código de defesa do consumidor no Brasil", acrescenta. "Ninguém é bonzinho nesse jogo. Algumas empresas vêm com um discurso de proteger o usuário, mas na outra ponta vendem white list", critica João Carvalho, sócio e diretor geral da Hands.

O assunto é tão polêmico que o criador de um dos primeiros adblockers para iOS não aguentou a pressão e preferiu retirar seu app da loja apenas três dias depois de colocá-lo no ar. Foi o que fez Marco Arment com seu adblocker "Peace". Lançado numa sexta-feira, o app chegou ao topo do ranking de títulos pagos na App Store nos EUA no domingo. Era um adblocker que bloqueava todos os anúncios, sem possibilidade de abertura de exceções. Arment, que é também o desenvolvedor por trás do Instapaper, recebeu uma enxurrada de críticas e decidiu acabar com o projeto e devolver o dinheiro a quem havia comprado o app. Ele relata a decisão em seu blog pessoal.

Análise

O surgimento dos adblockers para smartphones é uma consequência da exibição abusiva de publicidade. Além de incomodar o usuário e atrapalhar a sua experiência de navegação, o excesso de anúncios consome os planos de dados, o que é temeroso especialmente em mercados com maioria pré-paga, para a qual cada MB trafegado faz diferença em sua franquia diária.

Mas, por outro lado, a publicidade é necessária para sustentar muitos sites e apps de conteúdo gratuito. É verdade que o alcance dos bloqueadores de anúncios ainda é relativamente limitado, e talvez não seja necessária tanta preocupação. Poucos superaram 1 milhão de downloads em um universo de mais de 2 bilhões de usuários de smartphones no mundo. Mas se esse tipo de ferramenta se popularizar, a indústria de conteúdo móvel precisará se reinventar.

Se houver um crescimento do bloqueio apenas em sites móveis, os mais afetados serão os veículos de notícias. A tendência, neste caso, é que haja um processo de "appficação", ou seja, de migração desses veículos para dentro de apps, prevê Rafael Pellon, advogado do escritório FAS Advogados e consultor do MEF. Neste cenário, o Google perderia força, porque boa parte da sua receita publicitária móvel provêm da web, não de apps. E a Apple poderia ser beneficiada, porque no caso dela a estratégia de exploração de mobile advertising se concentra na iAd, rede de publicidade em apps. Há quem acredite que os provedores de conteúdo poderiam contra-atacar, adotando bloqueadores de conteúdo, que impediriam a visualização das notícias para quem usar um adblocker. Outra solução seria investir em novos formatos de publicidade com anúncios nativos.

Agora, se o bloqueio de anúncios se popularizar e vigorar tanto em sites quanto em apps, aí os formatos de publicidade móvel precisarão ser revistos, assim como o modelo de negócios de conteúdo móvel, dando uma guinada para conteúdo pago e assinatura. "Em uma análise preliminar, o consumidor pode achar legal, mas a conta vai chegar mais tarde, num efeito bumerangue, afinal, as empresas precisam sobreviver", argumenta Carvalho, da Hands.

Ninguém acredita que chegaremos a um ponto em que não haverá mais publicidade digital e que todo o conteúdo será pago. A maioria prevê que os adblockers continuarão sendo um utilitário de nicho, como é hoje para desktops. Mas há pelo menos um ponto positivo nessa história toda: trazer à tona um debate saudável sobre os limites da publicidade digital.

Veja abaixo os links para as outras duas matérias que compõem essa edição especial sobre adblockers.