E vejam vocês, distinto público, a AT&T comprou a TimeWarner nos EUA. Colocando-se em perspectiva, seria como se no Brasil a Telefônica estivesse comprando a Globo. Imagine só, ligar a TV e descobrir que seus canais e sua Internet estão agora interligados de tal maneira que só quem tem planos mais caros tem acesso aos melhores canais.

Mas só um instante, não é isso que já temos hoje em dia?

Exato, meu caro Watson.

Tecnicamente falando, as diferenças entre os atuais modelo de TV a cabo e prestação de serviços de banda larga são mínimas se considerarmos as combinações de negócios já existentes e o fato de que, na sua casa e na minha, um único cabo nos aparece com serviços de telefonia, TV a cabo e Internet banda larga. Juridicamente, contudo, temos uma nova fera na arena.

Historicamente, os reguladores, de lá e de cá, sempre procuraram manter o controle de operações de infraestrutura de redes e de conteúdos em empresas separadas, seja para estimular a competição, seja para impedir prejuízos que os consumidores poderiam ter em um mercado altamente concentrado, onde somos obrigados a contratar empresas com poucas opções, atendimento ruim, serviços mais caros e daí para baixo. Isto porque sempre se assumiu que caso uma empresa controlasse, verticalmente, infraestrutura e conteúdos, a longo prazo os consumidores teriam que acabar escolhendo entre grupos econômicos de tal maneira tão fortes que haveria uma balcanização na distribuição destes conteúdos, com benefícios apenas aqueles que pagassem mais.

Seria um Fla x Flu como nos tempos de Zico e Renato (barrigada) Gaúcho. Entre mortos e feridos, sobraria pouco para aproveitarmos. A economia digital e toda a gama de possibilidades que esta traz ficaria capenga, já que a tendência seria a existência de redes fechadas, sem as interconexões, informalidade e liberdades que a internet atual nos proporciona.

Este racional, em tese, funciona enquanto impedirmos a concentração de mercado e estimularmos a competição. Mas, como diria Garrincha, esqueceram de combinar com os russos. E os russos, neste cenário, podem ser chamados de OTTs, ou melhor dizendo, os Googles, Facebooks e WhatsApps da vida.

Ao permitir o desenvolvimento desses aplicativos e serviços, muito se ganhou e evoluiu, mas ao mesmo tempo o deslocamento gravitacional decorrente das quebras de paradigmas nos serviços de acesso à informação desbalanceou de tal maneira as estruturas de mercado que agora temos a compra da TimeWarner pela AT&T como talvez a reação mais radical por parte das empresas de infraestrutura. Afinal, todo o ganho de capital acumulado ao longo das últimas três décadas por estas empresas foi posta em xeque a partir do momento em que há competidores mais eficientes, mais baratos (para não falarmos em gratuitos) e mais inovadores dispostos a conquistar as mentes e corações de todos nós. E quando mencionamos as mentes, não pensem que isso é (só) uma metáfora.

Neste cenário, já havíamos tido um belo embate entre as ambições das empresas de infraestrutura e os reguladores quando a Comcast havia tentado comprar a TimeWarnerCable (unidade de provimento de acesso da TimeWarner, que agora pode ir pra AT&T), mas não foi feliz. Isto porque a FCC definiu que a concentração do acesso à Internet banda larga seria irregular.

Contudo, na lógica da AT&T, se o Governo americano, através da FCC, permitiu a compra da NBC pela Comcast, como forma de balancear a equação entre OTTs e provedores de rede e permitir a verticalização de uma empresa de infraestrutura (Comcast) com outra de conteúdos (NBC, uma das maiores redes de TV americanas), estava dado o recado para que as linhas vermelhas fossem ultrapassadas. Ainda que a fusão entre Comcast e NBC esteja sob críticas até hoje, o momento da AT&T em desafiar o atual status quo é agora, enquanto lhe resta influência, caixa e coragem (para não dizer Ballers).

Ao fazer a proposta para a TimeWarner, a AT&T levaria para casa canais como TNT, HBO, Warner, estúdios de cinema, séries, filmes, ou seja, toda uma gama de conteúdos suficiente para nos deixar na frente da TV por um (bom) tempo. Os problemas começam quando pensamos se seria possível tornar alguns (ou boa parte) desses conteúdos exclusivos apenas para quem contrata os serviços de cabo da AT&T. No Brasil, arguiríamos venda casada. Nos EUA, é um pouco mais complicado, já que se a FCC permitir a fusão haveria autorização do Governo Federal para esta venda conjunta, abrindo-se as portas para a formação de conglomerados de infraestrutura e conteúdo, balcanizando o acesso à informação.

A AT&T argumenta que é chegada a hora, caso contrário não faz sentido investir tanto em redes quando (boa) parte da receita acaba nas mãos dos OTTs. E neste modelo de competição aberta, sem limitações, haveria a possibilidade de Google, Facebook, Amazon e Netflix construirem suas próprias redes, equilibrando a competição.

A jogada da AT&T, neste sentido, é forçar a definição regulatória sobre o modelo de distribuição de conteúdo que teremos nas próximas décadas, seja ele a competição aberta ou a definição de limitações regulatórias mais claras. Isto porque, se vierem a ser impedidos de verticalizar suas ofertas, estarão ao mesmo tempo impedindo que os OTTs venham a construir redes de infraestrutura e provimento de acesso, obrigando estes a negociarem melhores termos com os donos das redes atuais.

De toda forma, mesmo que perca e não leve a TimeWarner para casa, a AT&T terá mais clareza em como o tabuleiro ficará distribuído. Caso ganhe, terá que enfrentar alguns dilemas sérios como as ameaças à neutralidade de rede, legalidade de ofertas de zero rating, exclusividade de canais online apenas para assinantes, falta de competitividade, disputas judiciais para acesso às suas redes etc.

Por enquanto, ainda que a influência desta aquisição não possa ser totalmente medida, já é sentida mundo afora. No Brasil há regras em vigor que proíbem a criação deste tipo de conglomerado, mas até quando?

Ao adquirir a TimeWarner, a AT&T comprovou que o conteúdo é mesmo rei. Rei morto, rei posto.