O comércio eletrônico ainda tem muito espaço para crescer no Brasil, tanto em novos usuários quanto em frequência de compras, diz Stelleo Tolda, COO do Mercado Livre, em entrevista para Mobile Time. A frequência de compra de um usuário ativo no Mercado Livre é de uma vez por mês, ainda longe do que se vê em players dos EUA e da China, que registram recorrência semanal. Ao mesmo tempo, o executivo aposta que o braço de pagamentos da empresa, o Mercado Pago, tem potencial para atingir uma recorrência ainda maior, o que também ajudará no crescimento do Mercado Livre, por serem serviços intrinsecamente ligados.

Em entrevista para este noticiário, Tolda fala sobre a onda de nascimentos de marketplaces e super-apps no Brasil, comenta as razões para a saída da empresa do consórcio Libra, descarta uma expansão para fora da América Latina e descreve a priorização do mobile dentro do Mercado Livre.

Mobile Time – Há uma onda recente no Brasil de surgimento de marketplaces digitais. O que acha desse movimento?

Stelleo Tolda – Para ser um marketplace você precisa, antes de mais nada, de uma audiência expressiva. Existe essa moda de muita gente querer ser marketplace porque é um modelo, principalmente no e-commerce, muito escalável. Quando se pensa em marketplace, há dois lados: oferta e demanda. Quanto mais vendedores você tiver, mais produtos terá, e isso atrai mais compradores. E quanto mais tráfego, mais demanda e, logo, mais vendedores. O movimento que vemos é que muitos desses vendedores testam mais de um marketplace ou vários ao mesmo tempo e acabam privilegiando aquele que gera mais volume de vendas. É um movimento na direção da escala. Não à toa na China, o maior mercado de e-commerce do mundo, duas vezes maior que os EUA, o Alibaba tem 80% de share. E nos EUA um player tem 40% do mercado de e-commerce.

Qual desses mercados é a maior referência para vocês no Mercado Livre? China ou EUA?

Os dois e mais: olhamos para o mundo todo. Em fintechs, o outro grande movimento que vemos é o das carteiras digitais. Estamos bem posicionados com Mercado Pago e muito do que a gente tem nele são coisas que aprendemos não apenas na China ou nos EUA, mas também na Índia, Coreia do Sul, Japão, sudeste asiático e até na Europa, na Grã Bretanha. Há exemplos ali de empresas que estão inovando em pagamentos.

Poderia dar um exemplo de funcionalidade inspirada fora desse eixo sino-norte-americano?

Uma empresa que inspirou a gente é a indiana Paytm. Visitamos a Índia há muitos anos e numa dessas visitas vimos uma coisa paradoxal: quanto mais funcionalidades e casos de uso você dá para uma carteira digital, mais você tende a atrair recursos para essa carteira. Quanto mais jeitos de tirar dinheiro da carteira mais recursos você atrai. Isso foi um aprendizado que extraímos de conversas com a Paytm. O eixo deixou de ser os EUA há algum tempo. Tem uma ênfase na China, mas não são os dois únicos lugares onde existem soluções criativas no mundo.

Stelleo Tolda, COO do Mercado Livre

Voltando aos marketplaces, quais atributos você diria que são fundamentais para o sucesso de um marketplace?

Estávamos falando antes da importância de ter tráfego. Não adianta querer ser marketplace que atraia vendedores se você tem menos tráfego que alguns desses próprios vendedores. Se for assim, esquece: você não vai ser um marketplace relevante. A gente é marketplace há 20 anos. Isso é um diferencial. A gente entende bem os desafios de se fazer um marketplace funcionar, de equilibrar essa oferta e essa demanda.

O conceito de markeplace está se expandindo para além do varejo. Alguns bancos agora se declaram como marketplaces, vendendo não apenas serviços financeiros e flertando com o conceito de super-app…

Sim, é algo que vimos acontecer na China, mas que pressupunha, nos dois grandes casos de super-apps, um enorme tráfego. Não por outra razão, os dois casos de uso que geraram super-aops na China são um de comércio eletrônico e outro de mensageria. São aplicações de uso corriqueiro e com escala pelo menos nacional. Olho com um pouco de desconfiança esse movimento porque um marketplace de verdade é um ambiente que atrai dois lados, compradores e vendedores, do contrário você é uma loja. Se você é um site que vende direto e atrai muitos compradores mas quem vende é você, você é uma loja. O poder de um marketplace é o fato de ele agregar aquilo que nenhuma loja ou marca consegue agregar sozinha. O poder de um marketplace é consolidar essa oferta, mas para isso você precisa ter escala – volto sempre a esse ponto, que é fundamental.

Quantos vendedores e produtos há no Mercado Livre hoje?

19 milhões de vendedores na América Latina. E o Brasil representa 60% disso. E temos mais de 100 milhões de ofertas.

Esses números seguem crescendo apesar da crise econômica? Ou a crise até ajuda um negócio como o de vocês?

Não digo nem que a crise nos ajuda, nem que nos atrapalha. Até porque a gente não tem um grupo de controle para testar. O que acontece, o movimento mais interessante, é o acesso. Ainda hoje temos um público que não comprou online ou que está comprando pela primeira vez. Não estamos necessariamente trabalhando para isso, mas hoje tem gente acessando a Internet pela primeira vez com seu primeiro celular. Aliás, o celular democratizou esse acesso. Até então o computador era um limitador. Muita gente não tinha poder aquisitivo para comprar um computador. Ou, se tinha, não via razão para comprar. Agora, com as redes sociais, não existe pessoa sem WhatsApp do Oiapoque ao Chuí. E Black Friday é também uma porta de entrada para muitos novos compradores. A gente vive ainda esse movimento de aquisição de clientes.

Também fazemos zero rating, que é uma forma de incentivar o acesso, que ainda é limitador para muita gente que tem celular pré-pago e usa o mínimo possível. Quanto mais acesso houver com boa qualidade e velocidade mais a gente vai vender. E tem a questão da frequência: quem compra no Brasil, na média, compra pouco. É quase uma por mês por usuário ativo. Enquanto isso, nos EUA, é quase uma compra por semana por usuário ativo. Na China é uma compra e meia por usuário ativo por semana, para você ver como está disseminada a cultura do e-commerce lá. Tem também a questão de oferta de serviços, da melhora da experiência, que passa por logística e qualidade da entrega, que estamos trabalhando muito e tem a ver com meio de pagamento e sua facilidade. Mas a crise passa ao largo de negócios como o nosso.

O zero rating deu certo com vocês? Gerou um aumento nos acessos?

Se estamos fazendo de novo agora com o Mercado Pago é um indicativo de que funcionou. Não é um “uau!”, mas contribui. Contribuiria mais se houvesse mais investimento em telecomunicações, se a cobertura e a qualidade da rede melhorassem.

O Mercado Livre é uma empresa de tecnologia com dois grandes negócios: comércio eletrônico e serviços financeiros. E-commerce é onde a gente começou, é mais antigo e com enorme potencial porque e-commerce ainda é pequeno dentro do varejo nacional. E serviços financeiros têm como mercado endereçável muito mais do que os 5% do e-commerce, mas também os outros 95% do varejo e coisas que não são consideradas varejo, como transportes etc. Há vários usos potenciais para o Mercado Pago. Então o potencial de gerar recorrência vemos realmente no Mercado Pago. Queremos que seja uma compra por semana por usuário ativo e acreditamos que essa recorrência vai acontecer primeiro no Mercado Pago. Mas estamos falando de um ecossistema único.

Qual é hoje a frequência de uso do Mercado Pago?

Não abrimos os dados de recorrência no Mercado Pago, mas está crescendo muito rapidamente, principalmente no mundo físico, conforme estendemos o uso de código QR em grandes redes como McDonalds, Drogasil, Shell e Rei do Mate. Tem uma série de cadeias nas quais estamos trabalhando para a aceitação disso, fora aquele pequeno comerciante que tem a máquina e que entende que a gente está alimentando a mesma carteira digital com os pagamentos que vêm por cartão de crédito ou código QR. O uso que damos para isso começou com recarga de celular, pagamento de boleto, transferência dentro do sistema, Bilhete Único, e mais e mais a presença física nos estabelecimentos comerciais. No dia a dia, quantos pagamentos uma pessoa faz? É no ônibus, no café, na drogaria, no restaurante, no táxi… É ambicioso, mas esse movimento está acontecendo por nós e por outros. De um ano e meio para cá surgiram várias carteiras digitais. O mais emblemático foi o lançamento do Iti, do Itaú. Não tem nada mais mainstream do que o banco Itaú. É um movimento positivo para a gente, porque começa a levar isso para o uso comum.

A chegada dos pagamentos instantâneos ajuda ou atrapalha vocês?

A minha visão é positiva. O Banco Central quer evitar concentração de mercado. Em carteira digital, semelhante à ideia do marketplace, ganha quem gera volume maior. Por trás disso ganha o melhor produto, quem oferece a melhor experiência. E para chegar nisso você tem que ter escala. Imagine um lojista que aceita seis carteiras digitais diferentes, mas um só código QR que transita por todas elas. Provavelmente tem algum custo de gestão de vários meios de pagamento simultaneamente. Se dessas seis carteiras tem uma ou duas que representam 80% do volume, vou deixar de usar as outras. Mas a concorrência é positiva. Esse é um segmento em que, diferentemente do e-commerce, essas dinâmicas de efeito de rede são mais limitadas. Já tem grandes redes como Mastercard e Visa funcionando e para a gente é interessante interoperar. Temos a carteira digital e uma conta, que é alimentada com suas vendas no Mercado Livre ou fora, com a máquina e o código QR. Você pode transferir dinheiro, pois essa conta está no Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB). O Mercado Pago é uma instituição de pagamento. Temos um cartão pré-pago, que é um cartão da marca Mercado Pago com a bandeira Mastercard e reflete seu saldo na conta. Ele interopera com a rede existente, que é da Mastercard. Acredito em um sistema mais aberto. Vai ganhar quem oferecer o produto melhor e que ganhe escala e benefícios para essa rede.

Antes do projeto da Libra, vocês chegaram a pensar em ter uma criptomoeda própria? E por que desistiram da Libra?

Não é objetivo nosso ter uma criptomoeda própria. Eu, particularmente, acredito que como meio de pagamento ainda não estamos em estágio em que as criptomoedas não são tão rápidas quanto necessário para processar um pagamento, quanto mais os pagamentos instantâneos que estamos falando. É um desafio para quem está pensando nisso. Como reserva de valor ou ativo financeiro, entretanto, tem o seu valor. Você tem criptomoeda?

Não…

Eu também não tenho. Eu pergunto isso em audiências de 200 a 1 mil pessoas e são poucas as mãos que se levantam dizendo que tem. Portanto, não justifica para a gente uma integração, embora tenhamos feito em caráter de teste. Não justifica abrir porque será usado por pouca gente.

Com relação à Libra: ela é um movimento coordenado que achamos interessante fazer parte dele em um primeiro momento, mas não contávamos com a reação tão negativa das autoridades em geral, não apenas as americanas. No mundo todo, na Europa e nos EUA, principalmente… Aqui no Brasil, o Banco Central também nos perguntou… Existe uma dúvida com relação ao funcionamento e o eventual sucesso ou não dessa iniciativa. PayPal investiu no Mercado Livre no começo do ano como parte de uma oferta que fizemos. Somos próximos a eles. E o PayPal também decidiu sair do consorcio. A gente conversou sobre isso. Mantemos uma boa relação com Facebook e consórcio Libra, mas decidimos esperar.

Por precaução?

Sim. Por conta da reação negativa. Pelo menos no curto prazo a gente entende que esse equilíbrio de riscos é mais negativo do que positivo.

Mercado Livre hoje é uma companhia mobile first?

Sim e cada vez mais. Em um primeiro momento, lá pelos idos de 2012 e 2013, tínhamos uma equipe de devs mobile. Logo depois, em 2014 ou 2015, começamos a treinar todos os devs (para mobile). Hoje não existe mais a figura do dev mobile separado dos outros.

O produto hoje é pensado prioritariamente, ou primeiramente, para mobile?

Sim. Até porque dois terços do tráfego e das vendas são mobile. Não se justifica a gente privilegiar o desktop.

Dez anos atrás, todo mundo dizia que mobile era o futuro. Hoje mobile é o presente. Qual é o próximo futuro?

Não sou futurólogo. Acho legal ter uma plataforma aberta como a que a gente tem, com capacidade de adaptação a tendências. Não precisamos saber qual será o futuro. Acompanhamos criptomoedas, interface por voz etc. Desenvolvemos integração para todas elas. Sobre interface por voz a gente fala há muito tempo. Em 2016 ou 2017 teve um breakthrough da capacidade de reconhecimento de fala, porque até então o software não fazia essa tradução de forma rápida e boa, tinha muito erro. Aí começaram a surgir outros dispositivos que permitem você acessar por voz, que na verdade são umas caixas de som inteligentes, mas a experiência de comprar nelas não decolou nem em mercados mais desenvolvidos. A gente acompanha tudo isso, mas não sei dizer qual será a próxima grande mudança. O mais importante é estar pronto para se adaptar, não só do ponto de vista da tecnologia, mas cultural dentro da sua empresa. Esse é o grande desafio. Por isso os bancos tradicionais estão preocupados com a digitalização desse mundo, porque a cultura deles muitas vezes não está preparada para essa transformação tão rápida.

Por falar em cultura da empresa, o Mercado Livre foi fundado na Argentina. Hoje a empresa é mais brasileira que argentina?

Muito mais. No resultado do terceiro trimestre, 65% da receita é advinda do Brasil.

Estamos em 18 países da América Latina, dos quais oito são os principais. E três (Brasil, Argentina e México) representam 90% do negócio.

Vocês já pensaram em operar na Espanha e em Portugal?

Estivemos na Europa, especificamente nesses dois países, mas saímos por ocasião do acordo com eBay em 2001. Não temos nenhuma intenção de sair da América Latina. A vantagem competitiva que temos é aqui, com a nossa marca. O negócio de e-commerce é muito local, implica em se integrar com meios de pagamento e serviços de entrega que são locais, com vendedores locais. Existe cross-border mas é pequeno dentro do todo. A gente não teria nenhum grande diferencial na Europa. Os mercados daqui têm potencial ainda muito grande. Brasil pode ser ainda quatro vezes o tamanho que é hoje. É melhor concentrar aqui.

Apesar de características locais em um ou outro país, em todos os mercados a gente onde atuamos vejo esse processo de democratização do comércio eletrônico e agora também dos serviços financeiros. Todos estão passando por isso. Mercado Livre é uma empresa regional, de capital aberto na Nasdaq, e esse é um diferencial: não somos uma empresa que atua só no Brasil e nem só na Argentina ou México. Somos efetivamente uma multinacional regional, mas com peso maior no Brasil.