Os ataques especialmente por parte das teles contra a ideia da neutralidade da rede estão fartamente documentados nas diversas contribuições e debates ocorridos no âmbito do Ministério da Justiça desde 2010 sobre o Marco Civil da Internet (MCI) até a edição da lei em abril de 2014. 

A resistência ao cumprimento do que se tornou um direito expresso no MCI e já estava estabelecido como um dos mais importantes princípios no Decálogo para a Governança da Internet, editado em 2009 pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), vem se manifestando desde a entrada em vigor da lei e vem se intensificando nos últimos tempos, marcando as disputas entre organizações da sociedade civil, Teles e Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), tendo como foco os planos de acesso a Internet predominantes no país, marcados pela oferta de franquias irrisórias associadas à prática de zero rating (ou tarifa zero) para determinadas aplicações.

Importante lembrar que a ideia de neutralidade, introduzida em 2003 por Tim Wo – hoje integrante do Conselho Econômico Nacional do governo Biden, é fundamental para a manutenção da arquitetura aberta das redes lógicas e para a garantia do caráter democrático da Internet. O termo surgiu com o objetivo de evitar práticas anticoncorrenciais, filtragem e privilégios de tráfego baseado em motivos políticos, comerciais, religiosos, culturais, entre outros. 

Entretanto, o que tem predominado no mercado brasileiro são acordos comerciais entre as grandes teles e provedores de aplicações, especialmente as da Meta – Facebook e WhatsApp – que, desde 2021 têm sido considerados quebra de neutralidade pela Corte de Justiça Europeia e pelo Body of European Regulators for Eletronic Communications (BEREC) – organismo que define orientações para os órgãos reguladores nacionais da Comunidade Europeia, tornando ilegais estes tipos de planos. 

Para a nossa tristeza, a ANATEL aqui no Brasil, assim como o Ministério das Comunicações, considera essas práticas “benéficas para o consumidor”, como tem dito em processos no Conselho de Administrativo de Defesa Econômica, ou em representação apresentada pelo Intervozes ao Ministério Público Federal ainda em 2018. Porém, a despeito dos ataques, a garantia legal expressa no MCI permanece intocada.

As iniciativas para a introdução do Fair(?) Share

Sintomático, então, que mais recentemente tenha surgido em diversos países o debate sobre a suposta necessidade de compartilhamento de custos de infraestrutura para provimento de acesso a Internet, defendido pelas teles, que pretendem ver definidas regras para cobrança dos provedores de aplicações pelo tráfego de seus pacotes de dados, como se estes custos já não estivessem sendo pagos por nós consumidores, seja pela cobrança dos serviços de telecomunicações ou dos serviços de dados, quando contratamos nossos planos de acesso e pagamos bem caro por isto, principalmente aqui no Brasil e em diversos países da América Latina.

Foi neste contexto que a ANATEL instaurou neste ano a Tomada de Subsídios nº 13, voltada para a revisão do Regulamento dos Deveres dos Usuários, com o objetivo de estabelecer o pagamento pelo uso das redes pelas empresas provedoras de serviços de aplicações, utilizando como justificativa dispositivos da Lei Geral de Telecomunicações (LGT), especialmente o inc. I, do art. 4º, de acordo com o qual, entre os deveres dos consumidores está o de “utilizar adequadamente os serviços, equipamentos e redes de telecomunicações” e os arts. 60 e 61, que, além de diferenciarem os serviços de telecomunicações do serviço de valor adicionado (SVA), classificam os provedores de SVA como usuários do serviço de telecomunicações, atribuindo à agência a competência parar regular “os condicionamentos, assim como o relacionamento” com as prestadoras de serviço de telecomunicações

Diversas entidades da sociedade civil participaram da consulta pública, como a Internet Society (ISOC), o Instituto de Tecnologia e Sociedade do RJ (ITS), Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS), Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) e a Eletronic Frontier Foundation (EFF), entre outras, destacando problemas com as premissas legais e técnicas utilizadas pela ANATEL. 

Vale destacar o lançamento da campanha Pedágio na Internet lançada pela ISOC e o ITS https://www.pedagionainternet.com.br/ , afirmando que “A política de compartilhamento de custos é injusta. Trata-se de uma tentativa das grandes operadoras de telecomunicações que operam no Brasil para exigir mais financiamento para seus negócios. Grandes operadoras de outros países da Ásia, Europa e América Latina estão usando a mesma estratégia. Mas isso mudará toda internet, para pior”.

Os entraves legais para atuação regulatória da ANATEL para o fair share

Na contribuição que enviei a ANATEL, levantei preliminarmente o fato de que, de acordo com a LGT, ainda que a Agência tenha atribuição para regular a relação entre os prestadores de serviço de telecomunicações e dos prestadores de SVA, neste caso ela não poderia atuar. 

Isto porque de acordo com a Norma 4, Editada pela Portaria 148/1995 do Ministério das Comunicações, o serviço de conexão a Internet é classificado como SVA, assim como são os serviços prestados pelos provedores de aplicações na Internet. 

Ou seja, a interferência regulatória se daria na relação que se estabelece entre dois prestadores de SVA e, portanto, fora da área de atuação da Agência, cujas atribuições estão limitadas ao campo das telecomunicações, de acordo com a LGT. 

Diga-se, aliás, que a natureza de SVA do serviço de conexão a Internet já está reconhecida até pela Súmula 334, do Superior Tribunal de Justiça, que tem sido utilizada de forma intensa nos mais recentes julgados, em razão do que é correta a conclusão de que a pretensão da ANATEL de regular a relação entre dois prestadores de SVA está em desacordo com a jurisprudência pacífica do país.

Universalização do acesso e uso adequado do serviço de telecomunicação

Outro argumento questionável utilizado pela ANATEL para justificar a medida regulatória que pretende adotar é no sentido de “diante do presente cenário de digitalização de serviços e ofertas de diversas aplicações por meio de plataformas digitais, classificados pelo MCI como provedores de aplicação e pela LGT como SVA, … as quais utilizam massivamente” as redes de telecomunicações, seria “relevante avaliar como tornar o relacionamento entre esses usuários mais equilibrado”, com vistas a propiciar conectividade significativa por meio de regras capazes de estimular os investimentos necessários em infraestrutura de acesso a Internet.

Ou seja, a ANATEL parte da premissa de que o uso massivo da rede não seria adequado, nos termos do art. 4º, inc. I, da LGT, o que revela conflito com o caráter universal estabelecido para o serviço de conexão a Internet pelo MCI.

Com outras palavras, o que a lei quer e nós sempre defendemos é o acesso cada vez mais intenso a Internet para todos, para que o uso das redes tanto de telecom quanto das redes lógicas seja proporcional.

É importante repetir que os consumidores já pagam pelo acesso a Internet e, na maior parte dos casos, têm o pagamento associado à quantidade de dados trafegados e, portanto, os provedores de acesso a Internet já recebem pelo uso. 

É verdade que no Brasil há insuficiência de infraestrutura de telecomunicações e que o quadro de acesso a Internet revela desigualdades gritantes e injustificáveis, como demonstram as pesquisas do CETIC.br, indicando que a grande maioria dos acessos a Internet no país se dá exclusivamente pela rede móvel, contratados por meio de planos com franquias irrisórias associadas ao zero rating para aplicações da Meta. 

No momento em que o volume de dados se esgota o acesso a Internet é bloqueado e os consumidores ficam restritos ao tráfego dos dados correspondentes às aplicações da Meta, resultando em discriminação por aplicação, expressamente vedada pelo MCI – art. 9º, e em acesso precário em descompasso com o que determina o art. 7º, inc. IV da Lei, estabelecendo que o serviço essencial de conexão a Internet tem de ser prestado sem interrupções.

Sendo assim, adotar medidas regulatórias para impedir esse tipo de contratação seria o verdadeiro incentivo a novos investimentos. A proposta da ANATEL de adotar o fair share para aumentar o acesso significativo terá como consequência efeito contrário ao anunciado, como já há exemplos em outros países da Europa, como têm informado a ISOC e o ITS.

Ademais, os esforços de fato efetivos para ampliar o acesso a Internet deveriam estar voltados para implementar as políticas públicas já existentes para a inclusão digital, como bem apontou o Tribunal de Contas da União, em recente julgado proferido em abril deste ano (TC 010.200/2022-3), tendo ficado consignado o seguinte:

Relatório TCU – TC 010.200/2022-3 – RELATÓRIO APROVADO 19 DE ABRIL 2023

“Demonstrou-se que a política pública do setor de telecomunicações está sendo implementada, praticamente, de forma exclusiva por meio dos compromissos de expansão e de prestação dos serviços de telecomunicações fixados em atos regulatórios em geral dissociados de um planejamento de médio e longo prazos. Essa prática não consegue enfrentar as questões relacionadas à inclusão digital de toda a sociedade brasileira, principalmente das classes menos favorecidas”.

Não é desejável, portanto, que a ANATEL pretenda expandir o acesso a Internet no Brasil adotando medidas que se desenvolverão pelas mãos da iniciativa privada e que vão aumentar os custos das operações e criar condições para  acordos comerciais, cujos resultados serão o tratamento privilegiado de quem paga mais, instaurando um ambiente propício para que ocorram ainda mais quebras da garantia da neutralidade da rede, em prejuízo inadmissível para os consumidores brasileiros.

Para além de tudo isso, vale notar que a receita das operadoras com a exploração do serviço de conexão a Internet, seja pela rede móvel seja pela rede fixa, vem crescendo mesmo nos cenários econômicos deprimidos por conta da pandemia, como demonstram os dados divulgados pelo Teleco incluindo 2022, não se justificando, portanto, a medida pretendida pela ANATEL.

Diante desse quadro, tudo indica que esta iniciativa de compartilhamento dos custos de infraestrutura de rede entre provedores de serviços de telecomunicações e provedores de aplicações de Internet esteja funcionando como um cavalo de Troia para introduzir de forma sorrateira e indireta a flexibilização do direito à neutralidade da rede.

O posicionamento da comunidade internacional para a governança da Internet

Na 18ª. edição do Internet Governance Fórum, que ocorreu entre os dias 8 e 12 de outubro em Kyoto no Japão, o tema do fair share foi bastante debatido e diversas entidades da Sociedade Civil Global divulgaram a Declaração sobre o compartilhamento de custos, por meio da qual afirmam: 

“… a grave preocupação sobre a tendência internacional de introdução de mecanismo de pagamentos diretos (“compartilhamento de custos”, “network contribution”, “network fee”, “fair share”) dos fornecedores de conteúdos e aplicações (CAPS) para operadores de telecomunicações de todo o mundo.

Na Europa, essas discussões avançaram ao longo do último ano, e um conjunto de partes interessadas, representando diversos setores e interesses, rejeitaram a proposta de compartilhamento de custos devido ao receio sobre a livre concorrência, a pluralidade dos meios de comunicação social, a proteção ao consumidor, o fomento à inovação e a qualidade do serviço; e as preocupações adicionais foram expressadas sobre a forma como a implementação dessa ideia viola o princípio da neutralidade da rede e o seu efeito prejudicial para uma Internet aberta e global.

(…)

Assim, unimos forças para requerer que governos de todo o mundo se abstenham de adotar o compartilhamento de custos, uma medida tão contraproducente e perigosa”.

A ANATEL ainda não concluiu o processo da tomada de subsídios nº 13 e há diversas manifestações públicas recentes de representantes da Agência e das teles questionando a neutralidade da rede e pedindo o “fim das amarras”, como disse a Claro em entrevista ao Teletime em agosto deste ano; e a agência  informou recentemente que irá instaurar nova consulta pública em novembro, como informou o Mobile Time, em matéria publicada no último dia 11 de outubro.

Do nosso lado, o dos consumidores e defensores da democratização das comunicações e inclusão digital, vamos continuar, junto com a comunidade internacional de governança da Internet, a defender a neutralidade da rede, garantia essencial para que práticas comerciais discriminatórias não se disseminem ainda mais, e a não adoção de medidas legais que propiciam mais desigualdades.