A base de dados pessoais dos brasileiros mantida pela Justiça Eleitoral, que inclui dados biométricos dos rostos e das digitais de milhões de cidadãos, é a matriz da chamada Identidade Civil Nacional (ICN). Esses dados são utilizados atualmente para a validação de cadastros na plataforma Gov.br, que dá acesso à versão digital de milhares de serviços do governo federal, e serão o insumo para a emissão do Documento Nacional de Identificação (DNI), um documento digital de identidade com lançamento previsto até fevereiro. Só que há uma série de riscos envolvendo a ICN que precisam ser mapeados e devidamente medidos, alertam pesquisadoras da Associação de Pesquisa Data Privacy Brasil, em conversa com Mobile Time.

“Em qualquer sistema de identidade civil digital há interferência na proteção de dados do cidadão. Por isso, é preciso medir bem sua estrutura e definir estratégias de mitigação”, recomenda Marina Meira, líder geral de projetos da Associação de Pesquisa Data Privacy Brasil.

O primeiro problema é que a lei 13.444, que criou a ICN, foi publicada em 2017, antes da aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), lei 13.709, de 2018. Portanto, alguns princípios e regras estabelecidos na LGPD não estão refletidos na ICN. Um exemplo é não exigir a produção de um relatório de impacto à proteção de dados pessoais relativo à ICN.

Meira destaca também o risco inerente à centralização de dados sensíveis de tantas pessoas em um mesmo ponto, neste caso, nos servidores do TSE. Ou seja, se houver um incidente, como o vazamento de informações, o dano seria enorme. Por sinal, recentemente, a Argentina sofreu esse problema, com a invasão do banco de dados do governo e posterior exposição de informações pessoais de cidadãos argentinos.

Outra questão que merece debate é a possibilidade de outros órgãos públicos, de qualquer esfera, acessarem os dados da ICN. Pela LGDP, deveria ser apresentado um motivo que justificasse o acesso, argumenta Meira.

Além disso, o comitê gestor da ICN é composto de representantes dos três poderes, mas não da sociedade civil. “Como se trata de algo que afeta a vida de todos os cidadãos, seria interessante que sua composição fosse multissetorial, incluindo a academia e técnicos, tal como no Comitê Gestor da Internet”, compara.

Cenário internacional

Uma identidade civil digital é tida como uma solução para prover um documento de identidade legal especialmente em países africanos e do Sudeste Asiático que sofrem com o problema de subregistro de seus cidadãos. Só que, justamente nesses países, há uma parcela significativa da população que não sabe operar dispositivos digitais ou nem sequer sabe ler. O caso indiano de identidade civil digital é um dos mais conhecidos do mundo, mas também um dos mais contestados, por causa de problemas experimentados pela população mais pobre, aponta Meira.

No Quênia, a Justiça considerou a ICN inconstitucional por ter sido implementada sem levar em conta o impacto na proteção de dados pessoais, comenta outra pesquisadora da Associação de Pesquisa Data Privacy Brasil, Marina Garrote. Ela lembra ainda que críticas semelhantes interromperam projetos similares em países desenvolvidos, como o Reino Unido. 

Garrote faz uma ponderação sobre a popularização do uso da biometria digital: “se você pede biometria para tudo, até para operações banais, o que será exigido como prova de identidade de uma pessoa quando se tratar de algo que requeira mais segurança? Cria-se uma facilidade e, ao mesmo tempo, uma grande dificuldade.”

Por fim, Meira conclui: “A cultura de proteção de dados deve ser compreendida não como impedimento à inovação, mas como ferramenta da inovação. É mais prejudicial desenvolver sem tomar precauções e depois ter grandes problemas, como a Argentina, do que desenvolver de forma mais pensada, faseada, com muitos testes, para construir uma solução mais segura e adequada. A ICN é algo para ser perene, para durar décadas”.

Mobi-ID

Marina Meira e Marina Garrote farão uma apresentação sobre o mapeamento de riscos e os cuidados necessários na implementação de uma identidade civil digital durante a 4ª edição do seminário online Mobi-ID, que acontecerá no dia 18 de novembro. O evento contará também com participações de representantes do Serpro, TSE, Dataprev, Abrid e várias empresas provedoras de soluções de autenticação e identificação digitais. Para mais informações, acesse www.mobi-id.com.br.