| Publicada originalmente no Teletime | A proposta de minuta que a Anatel discute para um futuro Regulamento de Deveres dos Usuários de Redes e Serviços de Telecomunicações está muito distante de criar qualquer coisa parecida com um network fee (ou fair share), a ser pago pelas empresas de Internet às empresas de telecomunicações. Tampouco trará obrigações de investimentos por parte das big techs. Mas pode ampliar significativamente o alcance da regulação da Anatel sobre o ecossistema digital, criar obrigações que se aplicariam às empresas de Internet e também criar novas regras para as operadoras de telecomunicações.
Segundo apurou Teletime, a proposta encaminhada pela área técnica ao conselho diretor da agência vai muito mais no sentido de colocar a Anatel em posição de regular um conjunto amplo de aspectos do ambiente digital que possam representar riscos para o funcionamento das redes de telecom do que no sentido de obrigar a negociação de tráfego de dados ou qualquer relação comercial entre empresas de telecomunicações e empresas de Internet, mecanismos de compensação financeira pelos investimentos ou co-investimentos em expansão de rede. Pelo menos se prevalecer a contribuição da área técnica da agência, que ainda precisa passar pelo crivo do conselho diretor (atualmente a matéria está sob a relatoria da conselheira substituta Cristiana Camarate, mas com a entrada dos conselheiros definitivos, a matéria deve ser sorteada para novo relator).
O regulamento que está em gestação na agência ainda terá uma longa tramitação, a começar por uma consulta pública. Mas ele se aplica, na maior parte das obrigações, aos chamados grandes usuários de redes de telecom, o que se caracteriza pela geração de tráfego superior a 5% do volume de dados total. São denominadas de usuárias das redes as empresas que hoje utilizam redes e serviços de telecom para a prestação de Serviços de Valor Adicionado, o que não se confunde com os consumidores finais.
Do lado de telecom, apenas as empresas com Poder de Mercado Significativo (as grandes operadoras, com mais de 5% de participação no mercado de banda larga ou serviços móveis) seriam afetadas pelas regras.
Livre pactuação
A proposta de regulamento traz uma consideração importante: o acesso dos grandes usuários às redes e serviços de telecomunicações para a prestação de Serviços de Valor Adicionado é assegurada e deve ser feita de forma isonômica e não discriminatória, mas em regime de livre pactuação. Trata-se de uma redação que pode dar margem à leitura de que existe um espaço de comercialização de capacidade, sem especificar em que níveis da rede se daria essa negociação. Por exemplo: uma coisa é a negociação para entregar o tráfego de um data center até um ponto de troca de tráfego. Outra coisa seria uma negociação para entregar o tráfego na residência do usuário, ou no smartphone. Isso não fica claro na redação da minuta.
De qualquer forma, por parte destes grandes usuários de redes, os princípios a serem seguidos são: Competição livre, ampla e justa; disponibilidade; eficiência; qualidade; sustentabilidade; segurança; interoperabilidade e propósito da rede de telecomunicações. Estas empresas usuárias devem ainda adotar normas e padrões; atuar com responsabilidade; observar direitos dos consumidores; buscar cooperação para assegurar a competição e uso adequado das redes, inclusive em relação à segurança pública; e ainda promover os direitos humanos, garantias fundamentais e liberdade de expressão, assim como proteção à privacidade e acesso à informação. O ponto de atenção é que a Anatel poderá solicitar destes usuários medidas de observância destes princípios. Ou seja, a Anatel passaria a fiscalizar a atuação das empresas de Internet de maneira mais próxima.
Eventos de impacto e Política de Uso
Um aspecto importante do regulamento proposto pela área técnica da agência é o dever dos grandes usuários de informar sobre eventos que possam afetar as redes. Segundo apurou este noticiário, isso se aplicaria, por exemplo, a grandes eventos de transmissão ao vivo pela Internet, ou conteúdos com forte geração de tráfego.
Os usuários das redes atingidos pelo regulamento devem prestar informação à Anatel sobre suas atividades quando estiverem relacionadas ao uso das redes e serviços de telecomunicações.
Da parte das operadoras de telecomunicações com poder de mercado significativo, elas deverão elaborar uma Política de Uso Adequado de Redes e Serviços de Telecomunicações. No caso das PPPs essa política é facultativa. E em todos os casos, ela é aprovada por um grupo técnico da Anatel (que será criado, com participação da agência e dos diferentes atores). Esta política dispõe sobre condutas e procedimentos para uso das redes por parte dos grandes usuários, e estas condutas devem ser seguidas pelas empresas de Internet, dentro de padrões de qualidade, segurança e regularidade que serão estabelecidos em regulamentação.
Obrigações para as teles e gestão de tráfego
Para as grandes operadoras de telecomunicações, há uma série de obrigações previstas para a conformidade das Políticas de Uso de Redes, o que indica um aumento da carga regulatória e dos cuidados operacionais das teles, inclusive medidas de mitigação de riscos, combate a fraudes na prestação de serviços, compartilhamento de informações etc.
A proposta da área técnica da Anatel para o regulamento reforça um dispositivo previsto no Marco Civil da Internet, que é a possibilidade de gerenciamento de rede para garantir a estabilidade, segurança e funcionalidade da rede. Ou seja, em caso de eventos que possam sobrecarregar a rede, as operadoras de telecomunicações poderiam agir dentro de determinados parâmetros para gerir o tráfego.
O grupo de trabalho que acompanhará o uso de redes de telecom estabelecerá ainda um Manual Operacional, e poderá ainda determinar o cumprimento de determinados requisitos técnicos e medidas específicas por parte dos usuários das redes, inclusive no que diga respeito à competição, estabilidade, segurança, funcionalidade e empoderamento do consumidor, inclusive com ações de educação e comunicação. Da mesma forma, a Anatel tratará as reclamações recebidas junto aos canais da agência em relação aos serviços prestados pelos usuários das redes como balizadora da efetividade da regulamentação.
Segurança pública no foco
A proposta de regulamento da área técnica dá um grande espaço à questão da segurança pública, indicando que é uma preocupação da Anatel o uso das redes para práticas ilegais e crimes cibernéticos.
As infrações às regras ficam sujeitas às sanções previstas para operadoras de telecomunicações, e a agência ficará responsável por dirimir conflitos entre operadoras de telecomunicações e usuários de rede (que, de novo, não se confundem com consumidores). O prazo de adequação será de 180 dias.