|Publicado originalmente no Mobile Time Latinoamérica| Os smartphones com inteligência artificial são a grande novidade no portfólio dos fabricantes de celulares este ano. Ao mesmo tempo, conforme ganha escala, a conectividade 5G está ficando mais barata e aparecendo em modelos de gama média. Mas essas duas tendências não são suficientes para gerar um aumento nas vendas de smartphones na América Latina em 2024. Em uma região marcada pela desigualdade social e pelo baixo poder aquisitivo da população, o sucesso do mercado de smartphones depende mais de fatores macroeconômicos e da estratégia de precificação dos fabricantes. Não à toa, o que mais cresce é o chamado mercado cinza, que já abocanha cerca de 20% das vendas e começa a incomodar os players que mantêm produção local, como Motorola, Samsung e TCL.

A expectativa é de que o mercado da América Latina seja abastecido este ano (sell-in) com 123 milhões de smartphones, informam Canalys e IDC. Para a primeira, esse número representa crescimento de 3% em comparação aos 119 milhões de 2023. Para a IDC, uma queda de 1%. Seja uma coisa ou outra, trata-se de variações pequenas, de apenas um dígito baixo. É possível dizer, portanto, que o mercado latino-americano ficará relativamente estagnado em 2024.

Pesa contra a indústria o fato de a região já ter praticamente concluído a penetração de smartphones junto à população economicamente ativa. Ainda acontecem vendas de feature phones, mas elas caem ano após ano. Para 2024, por exemplo, a IDC projeta apenas 4,4 milhões de feature phones enviados ao varejo latino-americano, queda de 8,5%. Ao mesmo tempo, o consumidor está ficando mais tempo com o seu smartphone, atrasando a troca, o que é reflexo dos preços cada vez mais elevados. Se antes as pessoas trocavam de celular a cada 1,5 ano, agora ficam cerca de três anos com o mesmo aparelho.

Os recursos de inteligência artificial incluídos nos novos modelos podem ser atraentes para o público de renda elevada, mas não vão provocar um impacto significativo no volume de unidades vendidas na região este ano. “Qualcomm, Intel, Mediatek: todo mundo lançou novidades em IA na metade do ano passado e que agora estão virando produtos. Este será o maior buzz da industria em 2024. Mas será que o usuário vai comprar isso? Será que vai pagar mais caro por isso?”, se questiona Reinaldo Sakis, diretor de pesquisa e consultoria sobre dispositivos para o consumidor final na América Latina, em conversa com Mobile Time.

O 5G tampouco empolga o público. O aumento da velocidade na transmissão de dados não foi acompanhado de um “killer application” que justifique a troca do smartphone. A cobertura limitada às grandes cidades e com muitas áreas de sombra diminui o interesse do consumidor.

“Não há demanda real por 5G hoje na América Latina. Não é um direcionador de venda. As pessoas querem um processador mais rápido, ou uma câmera melhor, ou mais memória: estes são drivers de venda mais importantes que o 5G. E falta cobertura. Muita gente tem telefone 5G e não vê diferença”, comenta Miguel Perez, consultor sênior de mobilidade Latam da Canalys, também em conversa com Mobile Time. O diretor de vendas da TCL Mobile no Brasil, Marcelo Perin, concorda: “O 5G ainda é pouco sedutor”.

Miguel Perez, da Canalys: “Não há demanda real por 5G hoje na América Latina”

Vale dizer que a recente onda de smartphones dobráveis foi uma tentativa de conquistar novamente o desejo do público, mas os preços ainda são altos. Na mesma linha de buscar um diferencial competitivo, a TCL apostou em uma nova tecnologia de tela, que batizou como NXT Paper, que é antirreflexo e não emite luz azul, cansando menos a vista.

“Quantidade de Gigabytes de RAM ou de memória não são mais tão atraentes. Por isso as empresas criaram produtos dobráveis para chamar a atenção dos consumidores, para ter um apelo mais visual no primeiro impacto. Foi por isso também que trouxemos o NXT Paper”, explica Perin, da TCL.

Macroeconomia

Se as novidades tecnológicas não são suficientes para o consumidor latino-americano abrir a carteira, por outro lado, fatores macroeconômicos na região contribuem a favor neste momento, como controle da inflação e crescimento econômico, além de estoques menos inchados no varejo.

“A política dos bancos centrais de manter a taxa de juros elevada conteve a inflação na maioria dos países da região, o que favorece a confiança do consumidor, incrementando o consumo”, comenta Perez, da Canalys. E acrescenta: “houve saturação de inventários em 2022 e em parte de 2023 em muitos canais. Mas eles foram sendo limpos e agora os níveis de estoque são mais saudáveis, o que favorece a chegada de novos modelos e lançamentos”.

Mercado cinza

Uma tendência preocupante na América Latina é o crescimento do mercado cinza. Assim são chamados os celulares importados diretamente pelos consumidores em marketplaces internacionais ou que chegam contrabandeados. A esmagadora maioria vem da China. Alguns passam primeiro pelo Paraguai e depois entram no Brasil, na Argentina e em outros países da região. Não são necessariamente aparelhos falsificados: a maioria são modelos devidamente homologados pelos órgãos reguladores da América Latina, mas que não pagam os impostos devidos de importação, provocando uma competição desleal. Até influenciadores digitais contribuem para o sucesso do mercado cinza, promovendo links de vendas em lojas internacionais.

Brasil, México e Colômbia são os países que mais sofrem com o mercado cinza de smartphones na América Latina. A Canalys estima que 20% dos smartphones vendidos na região sejam provenientes do mercado cinza.

Reinaldo Sakis, da IDC América Latina

Em números absolutos, o pior cenário está no Brasil, talvez pela alta carga tributária do país. Em 2023, a IDC calcula que foram vendidos no Brasil 5,5 milhões de smartphones no mercado cinza, ou 15% do total de 37 milhões aparelhos comercializados no país. Para 2024, a projeção da IDC é de que o mercado cinza no Brasil cresça 45%, alcançando 8 milhões de unidades, ou 21% do total.

“O avanço no número de vendas de produtos contrabandeados acarreta prejuízos enormes como evasão fiscal, perda de empregos e queda de investimentos, além da concorrência desleal para o setor. E é um tema que afeta também os consumidores, que muitas vezes não sabem que o produto é ilegal e entraram no país sem a homologação, sem pagamento de impostos e sem garantia para o consumidor em caso de problema técnico”, alerta o presidente da Motorola na América Latina, José Cardoso, em entrevista para Mobile Time Latinoamérica.

O combate a esse problema não é fácil, pois esbarra no direito do consumidor e na dificuldade de se identificar importações irregulares, seja pelos canais eletrônicos, seja por via terrestre oriundas do Paraguai. As operadoras não enxergam o mercado cinza como um problema, contanto que os assinantes comprem aparelhos homologados pelos respectivos órgãos reguladores. E há quem aponte certa complacência de novas marcas, que não teriam interesse em enfrentar a questão e oferecem garantia para os produtos independentemente de terem sido importados irregularmente.

Na tentativa de competir com o mercado cinza, os grandes fabricantes estão montando portfólios com especificações piores, mas com preços mais baixos, aponta Sakis, da IDC. Por isso sua previsão é de que haja uma queda de 3% na receita com smartphones na América Latina em 2024, uma redução maior que aquela prevista em quantidade de unidades comercializadas (-1%).

Existe até mesmo a preocupação de as marcas repensarem sua estratégia de produção local, eventualmente fechando fábricas na América Latina – o que afetaria principalmente Brasil e Argentina, que contam com zonas francas para produção de eletroeletrônicos em Manaus e na Terra do Fogo, respectivamente.

“Cada um vai ter que fazer essa conta. É um risco que fica sobre a nossa cabeça sempre. Fazemos conta todo dia para ver como podemos ser mais eficientes. Senão, teremos que repensar a estratégia. Todo mês olhamos alternativas de verticalização da nossa produção no Brasil para reduzir custo e ganhar escala e empregabilidade. É um jogo de xadrez”, relata Perin, da TCL.

Marcelo Perin, da TCL: “Todo mês olhamos alternativas de verticalização da nossa produção no Brasil para reduzir custo e ganhar escala e empregabilidade. É um jogo de xadrez”

Divisão do mercado

Há muito tempo, Samsung e Motorola são as líderes em market share no mercado latino-americano de smartphones. Mais recentemente, especialmente depois da saída da LG, a Xiaomi ganhou espaço significativo e se consolidou na terceira posição. A Apple tem uma fatia relevante na alta gama. E novos players, como TCL, Transsion (Infinix e Tecno), Oppo e realme, disputam o restante.

De acordo com a Canalys, em 2023 na América Latina, a Samsung respondeu por 32% das vendas de smartphones, seguida por Motorola (20%), Xiaomi (16%), Transsion (8%) e Apple (6%). As demais marcas somaram 18%.

“Chama a nossa atenção a grande quantidade de marcas de smartphones na América Latina. Algumas chegam e desaparecem. Outras permanecem com participação modesta. Há muitos consumidores dispostos a provar novos equipamentos”, comenta Perez, da Canalys.

O fortalecimento de marketplaces e do social commerce (vendas a partir de redes sociais) representa uma porta de entrada para novas marcas na região, que agora não dependem de acordos de distribuição com grandes canais, como redes de varejo e operadoras móveis. No curto prazo, o preço baixo desses players é atraente para o consumidor. Porém, a falta de um suporte de qualidade na região pode prejudicar uma estratégia de longo prazo para essas novas marcas.

Ilustração de Nik Neves