Imagine isso: você acorda numa segunda-feira e seu agente pessoal de IA já checou a previsão do tempo. Vai chover. Como percebeu que nos últimos dias você preferiu apps de transporte nesses casos, ele já agendou um carro com desconto para as 8h15, seu horário habitual de saída. Notou também que seu estoque de cápsulas de café está acabando — então comparou preços, escolheu o melhor custo-benefício e fez a compra com seu cartão virtual pré-autorizado. Ah, e detectou uma cobrança duplicada na conta de luz: já contestou e pediu estorno. Tudo isso enquanto você escovava os dentes. Nenhum clique, nenhum app aberto. Apenas um resumo no café da manhã, com a chance de você revisar ou reverter.

Essa não é uma cena de ficção científica. É o que começa a se tornar realidade com a chegada da AGENTIC AI — um novo tipo de inteligência artificial capaz de tomar decisões e agir por conta própria em nome do usuário. No universo dos meios de pagamentos, isso significa uma transformação silenciosa, mas profunda: os pagamentos agênticos, nos quais delegamos não só o pagamento em si, mas a decisão de quando e como pagar.

De interfaces para intenções: a nova jornada financeira

Historicamente, os pagamentos evoluíram em busca da conveniência: do dinheiro ao cartão, do cartão ao mobile, do mobile ao QR Code. A próxima fronteira será ainda mais invisível — delegar a um agente de IA a tarefa de entender o contexto, interpretar a necessidade e agir de forma autônoma, conectando-se diretamente à infraestrutura financeira.

Imagine um assistente de IA que sabe que você está em viagem e sua assinatura de roaming venceu. Sem que você precise se preocupar, ele busca a melhor opção e realiza o pagamento automaticamente. Ou um agente corporativo que monitora o preço de um insumo estratégico e, ao detectar uma oferta vantajosa, negocia, compra e paga — obedecendo regras predefinidas.

Esse modelo já está em desenvolvimento por gigantes como Mastercard, Visa e PayPal, além de fintechs inovadoras em mercados como América Latina e Ásia. E não se trata de algo teórico: os primeiros pilotos já estão sendo testados com transações reais.

O que é uma AGENTIC AI — e por que ela muda tudo?

Uma AGENTIC AI é mais do que um chatbot ou um gerador de respostas. Trata-se de uma entidade computacional capaz de perceber o ambiente (dados contextuais), planejar ações com base em metas, executá-las de forma autônoma e aprender com os resultados. Na prática, é como um assistente pessoal que você autoriza a agir em seu nome — com limites claros, mas com liberdade de execução.

Essa nova geração de IA combina interpretação de intenção, raciocínio adaptativo e capacidade de execução direta via APIs e integrações com sistemas financeiros. Isso exige mudanças profundas na forma como construímos os sistemas de pagamento: é preciso prever transações iniciadas por agentes não humanos, registrar a origem da decisão, permitir consentimento dinâmico e garantir segurança transacional em tempo real.

Mastercard, PayPal e o ecossistema da confiança programada

Recentemente, a Mastercard anunciou o Agent Pay, uma iniciativa robusta em parceria com a Microsoft e IBM para criar as bases da infraestrutura de pagamentos agênticos. Trata-se de muito mais do que uma funcionalidade experimental. As empresas estão construindo um modelo operacional completo que inclui identidade digital para agentes, gestão de consentimento e roteamento inteligente de decisões.

A Mastercard iniciará sua atuação em parceria com a Microsoft, focando no desenvolvimento e na expansão de novos casos de uso para o comércio agêntico. Posteriormente, a empresa também pretende integrar outras plataformas líderes de inteligência artificial ao seu ecossistema. Além disso, a Mastercard firmará colaborações com provedores de tecnologia como a IBM, utilizando soluções como o watsonx Orchestrate, para acelerar a implementação de aplicações B2B nesse novo ambiente de pagamentos e automação.

Nesse ecossistema, um agente pode, por exemplo, receber permissão para pagar mensalmente por uma plataforma de streaming, desde que o valor não ultrapasse determinado limite. Se o preço mudar, o agente pode consultar o usuário ou buscar uma alternativa mais econômica. O agente também pode operar com múltiplos objetivos — um para finanças pessoais, outro para compras recorrentes, outro para otimização de gastos empresariais.

Para garantir segurança, a Mastercard propõe um modelo de agentes verificados, com identidades únicas (tokenizadas) e registros auditáveis. Esse modelo já está sendo testado com parceiros comerciais nos EUA e Europa, especialmente em casos de recorrência, automação de pequenas despesas e compras feitas por voz em dispositivos conectados.

A PayPal, por sua vez, vem testando protótipos que integram LLMs (Large Language Models), como o GPT-4, com sua carteira digital. Um desses pilotos, realizado em parceria com a OpenAI, permite que usuários iniciem pagamentos por comandos de voz em linguagem natural, como “dividir o jantar com Ana” — e o agente faz todo o trabalho, do cálculo à transferência.

Visa Intelligent Commerce: IA plugada na malha transacional

A Visa também está apostando forte em um modelo de comércio baseado em IA. Batizado de Visa Intelligent Commerce, o programa oferece ferramentas para que desenvolvedores de fintechs, bancos e marketplaces integrem agentes inteligentes às redes transacionais da Visa.

Por exemplo, um agente treinado por um app de delivery pode prever quando você provavelmente fará seu próximo pedido — e já negociar ofertas, escolher o restaurante preferido e até deixar o pagamento preparado para confirmação rápida. Ou, em um contexto corporativo, pode sugerir — e eventualmente autorizar — o pagamento de uma fatura que atenda aos parâmetros de compliance da empresa.

A Visa também introduziu um modelo de consentimento contextual, que permite ao usuário controlar, em tempo real, o que o agente pode ou não fazer: definir um valor máximo, estabelecer janelas de tempo, limitar categorias de gasto, ou revogar acessos com um clique.

América Latina: os primeiros passos da automação inteligente

Na América Latina, embora o conceito de pagamentos agênticos ainda esteja em estágio inicial, diversas iniciativas já indicam um movimento consistente em direção à automação inteligente e contextualizada. No Brasil, o Nubank começou a testar funcionalidades baseadas em Open Finance que permitem ao sistema sugerir — e em breve executar — ações financeiras como aportes automáticos, pagamentos recorrentes e transferências baseadas em regras predefinidas. O Mercado Pago, por sua vez, avalia formas de implementar agentes para PMEs que apresentam padrões transacionais previsíveis, como pagamentos regulares a fornecedores ou agendamentos de folhas de pagamento. Já a Belvo, com operações no Brasil e no México, está desenvolvendo uma camada intermediária que permite a desenvolvedores ativar motores de decisão em tempo real conectados a dados bancários via Open Finance — o que pode se tornar uma ponte natural para pagamentos iniciados por agentes.  Outras iniciativas estão conectando agentes inteligentes a dispositivos físicos: Car IQ e Visa vêm testando sistemas de pagamento embarcado em veículos conectados para frotas, permitindo que o carro pague sozinho por combustível, pedágios e serviços de manutenção, sem intervenção humana. Embora os testes estejam concentrados nos EUA e Europa, eles apontam caminhos viáveis para a América Latina, especialmente em setores como mobilidade urbana e logística inteligente.

Esses exemplos mostram que, mesmo em mercados emergentes, a lógica da automação por intenção está em construção, abrindo espaço para que a América Latina seja mais do que seguidora — e se torne referência internacional.

O que muda na infraestrutura de pagamentos?

Para suportar pagamentos agênticos em larga escala, a infraestrutura atual precisa evoluir. Hoje, sistemas de pagamento tradicionais estão desenhados para processar transações iniciadas por pessoas físicas ou jurídicas — usuários humanos, empresas, sistemas bancários autorizados. Mas nos pagamentos agênticos quem inicia a transação é um agente de software, como um bot de IA, agindo de forma autônoma.

É necessário que as trilhas de pagamento — como VisaNet, Mastercard Network e o sistema do PIX no Brasil por meio do SPI (Sistema de Pagamentos Instantâneos) — aceitem transações iniciadas por agentes não humanos, mas identificáveis e autorizados. Isso requer a criação de novos identificadores transacionais, capazes de registrar a origem da decisão (por exemplo, “Agente AI-XYZ v1.2, autorizado pelo usuário X em tal data“). Esse identificador funciona como um CPF do robô: deixa explícito que o agente é autorizado, auditável e tem escopo limitado (por exemplo, pagamentos até R$ 500/mês, com validade de 90 dias).

Além disso, os sistemas de autorização e antifraude precisarão distinguir entre comportamentos legítimos de agentes e ações suspeitas. Um desafio adicional é a gestão dinâmica de consentimento, onde o usuário pode, em tempo real, alterar permissões do agente (pausar, restringir ou ampliar escopos de atuação).

Esses elementos ainda estão em desenvolvimento, mas Mastercard e Visa já testam estruturas baseadas em identidade digital descentralizada (DID, do inglês Decentralized Identifier), consentimento granular e trilhas de auditoria automatizadas. Esse é um novo padrão técnico que permite que indivíduos, organizações ou até mesmo máquinas e agentes de IA tenham uma identidade digital própria, controlada por eles mesmos, sem depender de autoridades centrais como governos, bancos ou big techs.

Objetivamente: os trilhos de pagamento precisam aprender a conversar com robôs que pagam — e fazer isso com segurança.

Desafios regulatórios e éticos: quem responde pelo erro da máquina?

Com agentes autônomos tomando decisões financeiras em nome de pessoas físicas ou jurídicas, surge uma nova zona cinzenta regulatória. Se um agente cometer um erro — por exemplo, contratando um serviço indevido ou realizando uma compra fora do escopo — de quem é a responsabilidade? Do programador? Da instituição financeira? Do próprio usuário que delegou o controle?

Na Europa, esse debate já está sendo pautado no contexto do AI Act. No Brasil, o Banco Central pode usar o arcabouço do Open Finance e do PIX Automático como ponto de partida para criar regulamentações específicas. Será necessário estabelecer modelos de responsabilidade compartilhada, com seguros específicos e formas claras de revogação e reparação.

Há ainda questões sobre explicabilidade. Como garantir que o usuário entenda de forma clara o que o agente pode ou não fazer? Um modelo promissor é o de “dashboard de agentes”, com alertas, relatórios em linguagem natural e possibilidade de revisão retroativa das ações do agente. É uma plataforma centralizada que monitora em tempo real as ações dos agentes de inteligência artificial que atuam em nome dos usuários. Essa plataforma centralizada monitora em tempo real os agentes de IA que atuam em nome dos usuários e oferece supervisão prática e transparente. Outro recurso emergente é o “journaling da IA” — uma espécie de diário explicável que registra, em linguagem natural, os motivos das decisões do agente.

O invisível será o novo normal

A disrupção dos pagamentos agênticos não está no valor das transações, mas no modelo mental. O usuário deixa de ser executor e passa a ser curador de intenções, enquanto a IA age como executora e otimizadora. O pagamento deixa de ser um evento manual e passa a ser um comportamento delegado, fluido e previsível.

Mastercard, Visa, PayPal e plataformas globais estão construindo esse futuro agora. É a evolução do “pagar com um clique” para “pagar sem nenhum clique”. A América Latina, com seu ecossistema vibrante de fintechs e sua alta digitalização, tem a chance de não apenas acompanhar essa tendência, mas se tornar referência global.

Se a era da experiência foi sobre tornar a interação mais fácil, com interfaces simplificadas, a próxima revolução será sobre eliminar a necessidade de interação — e transformar intenções em ações automáticas, com inteligência e confiança.

 

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