A transformação digital da administração pública brasileira não é mais um projeto futuro — é um processo em curso, sustentado por uma teia de políticas públicas, marcos legais e instituições tecnológicas que evoluíram silenciosamente ao longo da última década.
Desde a pandemia de 2020, quando governos foram obrigados a digitalizar em poucos meses serviços antes totalmente presenciais, consolidou-se um novo paradigma: o Estado digital como infraestrutura essencial. Nesse cenário, as empresas estatais de tecnologia emergiram como atores centrais da política de inovação pública, responsáveis por garantir interoperabilidade, soberania de dados e continuidade dos serviços públicos digitais.
Serpro, Dataprev, Prodesp, Celepar, Prodemge, Prodam dentre outras — que nasceram para processar dados e sustentar a máquina administrativa — hoje operam como plataformas estratégicas do Estado, conectando governos, provedores de nuvem e cidadãos em um ecossistema regulado de confiança digital.
Mais do que prestadoras de TI, essas estatais são instituições de Estado, incumbidas de assegurar que a modernização digital ocorra dentro dos marcos legais, com segurança jurídica, governança pública e aderência aos princípios da Lei nº 14.129/2021 (Lei do Governo Digital), da Lei nº 13.303/2016 (Lei das Estatais) e da Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações).
1. A nova infraestrutura digital do Estado brasileiro
A digitalização do setor público brasileiro entrou em uma fase de maturidade institucional. O país passou de iniciativas isoladas de informatização — centradas em sistemas departamentais — para uma infraestrutura digital de Estado, na qual dados, serviços e plataformas são compartilhados entre entes federativos sob padrões comuns de interoperabilidade e segurança.
Essa evolução resulta da convergência entre governança digital, economia de dados e inovação pública, impulsionada por políticas como a Estratégia de Governo Digital, o Marco Legal das Startups (LC 182/2021), o Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação e a própria Lei do Governo Digital.
Nesse arranjo, as estatais de TI assumiram papel estruturante: garantem que a transição digital ocorra de forma segura, contínua e juridicamente legítima, atuando como pontes entre o setor público e o ecossistema privado de inovação.
Hoje, essas instituições operam ecossistemas digitais completos — com marketplaces de software, plataformas multicloud, serviços de identidade digital, gestão de dados e soluções SaaS voltadas à administração pública. Por meio de acordos operacionais e parcerias estratégicas, elas têm permitido que União, estados e municípios adotem soluções digitais de forma ágil e juridicamente amparada, cumprindo os princípios de eficiência, economicidade e transparência.
Esse novo papel — híbrido entre tecnologia e política pública — consolida as estatais de TI como o núcleo técnico-institucional da transformação digital brasileira, uma espécie de “infraestrutura invisível” que sustenta a modernização do Estado e a entrega de serviços públicos de qualidade à sociedade.
2. O contexto pós-pandemia e a demanda por agilidade
Desde 2021, com a vigência da Lei do Governo Digital e os impactos da pandemia, houve uma aceleração sem precedentes na digitalização de serviços públicos. Segundo o BNDES e a Finep, mais de R$ 5,4 bilhões foram aprovados em créditos para projetos de inovação com inteligência artificial, e R$ 1 bilhão foi destinado exclusivamente à transformação digital de estados e municípios.
Essa conjuntura impôs aos entes públicos a necessidade de adotar soluções tecnológicas em prazos curtos — e foi nesse contexto que as estatais de TI se consolidaram como braço estruturante da administração pública digital.
3. A vantagem institucional das estatais
A Lei nº 13.303/2016 (Lei das Estatais) marcou um ponto de inflexão no regime jurídico das empresas públicas. Além de uniformizar práticas de governança, criou mecanismos para contratações diretas fundadas em “oportunidade de negócio” ou “parceria estratégica”, quando o objeto estiver vinculado ao seu propósito social.
O art. 28, §3º, I dispensa licitação quando a estatal comercializa produtos ou serviços diretamente ligados ao seu objeto; o art. 29, XI permite contratações entre estatais e subsidiárias com preços compatíveis com o mercado — critérios reforçados pelo TCU (Acórdãos nº 598/2018 e nº 2488/2018), que exigem comprovação de vantajosidade e transparência na formação de preços.
Esse modelo jurídico transformou as estatais em instrumentos de aceleração da política digital, possibilitando contratações mais céleres e juridicamente seguras. Casos emblemáticos incluem: os acordos da Prodesp com órgãos estaduais e prefeituras paulistas; as parcerias da Celepar, formalizadas como oportunidades de negócio e reconhecidas pelo TCE-PR como juridicamente válidas; e as adesões estaduais ao Serpro Multicloud, que atua como broker público de serviços AWS, Google, Oracle e Huawei.
Mais do que mecanismo contratual, as parcerias estratégicas consolidaram-se como ferramentas de política pública, garantindo segurança jurídica, soberania de dados e eficiência na aquisição de soluções digitais.
4. O Serpro como cloud broker da administração pública
Entre as estatais de tecnologia, o Serpro ocupa posição singular. Criado pela Lei nº 4.516/1964, o órgão passou a deter, pela Lei nº 5.615/1970 (alterada pela Lei nº 12.249/2010), prerrogativa de dispensa de licitação para serviços estratégicos de TI contratados pela União — dispositivo declarado constitucional pelo STF na ADI nº 4.829/DF (2021).
Na prática, o Serpro atua como integrador multicloud (cloud broker), conectando órgãos públicos a provedores de nuvem por meio da plataforma Serpro Multicloud, que segue o modelo de multicatálogo definido pela Portaria SGD/MGI nº 5.950/2023. Nesse arranjo, o ente público contrata diretamente o Serpro, que agrega e gerencia os serviços de terceiros, garantindo governança, proteção de dados e compatibilidade de preços auditáveis.
O TCU reconheceu a legitimidade do modelo (Acórdãos nº 598/2018 e nº 229/2022 – Plenário), desde que acompanhado de transparência e memória de cálculo. O resultado é uma infraestrutura soberana de dados, que permite à administração consumir tecnologia com segurança jurídica e aderência à legislação nacional.
O Serpro consolidou-se, assim, como infraestrutura estratégica do Estado digital brasileiro, assegurando que as contratações de tecnologia respeitem legalidade, economicidade e soberania informacional.
5. Parcerias estratégicas e acordos operacionais
O modelo das parcerias estratégicas, previsto na Lei das Estatais e na Lei nº 14.133/2021, tornou-se o principal vetor de modernização digital no setor público. Esses instrumentos — que combinam cooperação técnica e comercialização de serviços — permitem contratações rápidas e seguras, desde que atendam aos critérios de vantajosidade, aderência ao objeto social e interesse público.
O TCU e os TCEs vêm reconhecendo a validade dessas formas de contratação, desde que observadas transparência, precificação auditável e governança. O Acórdão TCU nº 2488/2018, ao analisar a parceria da Telebrás com a Viasat, consolidou parâmetros de integridade e demonstração de vantagens para ambos os partícipes.
Na prática, esse modelo multiplicou-se: a Prodesp mantém mais de 100 acordos operacionais ativos; a Celepar expandiu o uso de oportunidades de negócio; e a Dataprev e o Serpro ampliaram o escopo de interoperabilidade e identidade digital.
Essas experiências demonstram que as parcerias com estatais transcendem o contrato e formam um modelo cooperativo de política pública digital, no qual o Estado inova dentro de sua própria estrutura, com governança, segurança e dados sob jurisdição nacional.
6. O elo entre transformação digital e soberania tecnológica
A transformação digital do Estado é, antes de tudo, um projeto de soberania tecnológica e de governança de dados públicos. As estatais asseguram que infraestruturas críticas e bases de dados permaneçam sob jurisdição nacional, conforme a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) e as políticas de segurança da informação.
O Serpro e a Dataprev operam como guardiões da nuvem soberana federal; Prodesp, Celepar, Prodemge, Prodam replicam o modelo nos estados, oferecendo identidade digital, interoperabilidade e certificação de nuvem. Essas iniciativas reduzem a dependência tecnológica externa, fortalecem a capacidade analítica do Estado e atendem aos padrões da Portaria SGD/MGI nº 5.950/2023.
7. Conclusão – O Estado digital como obra coletiva
A jornada de transformação digital do Estado brasileiro passa, inevitavelmente, pelas empresas estatais de tecnologia. Ao se reinventarem como plataformas públicas de integração tecnológica, elas traduzem os princípios de eficiência, segurança e valor público em resultados concretos para a sociedade.
Mais do que provedoras de tecnologia, são infraestruturas de confiança — o eixo que garante continuidade, transparência e soberania da administração digital. Fortalecer esse ecossistema estatal é reconhecer que o futuro do governo digital depende de instituições capazes de unir inovação, regulação e ética pública em torno de um mesmo propósito: transformar dados em valor público e tecnologia em cidadania.
Referências:
O GLOBO. BNDES e Finep já aprovaram R$ 5,4 bilhões em empréstimos para empresas desenvolverem inovações com IA. Rio de Janeiro: O Globo, 4 nov. 2025. Disponível em:
BRASIL. BNDES e BID vão destinar R$ 1 bilhão para projetos de transformação digital de estados e municípios. Brasília: Secretaria de Comunicação Social – SECOM, Gov.br, jan. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2025/janeiro/bndes-e-bid-vao-destinar-r-1-bilhao-para-projetos-de-transformacao-digital-de-estados-e-municipios
PRODESP. Acordos de Produtos e Serviços. São Paulo, 2025. Disponível em: https://www.prodesp.sp.gov.br/clientes/acordos-de-produtos-e-servicos
ZENITE. TCE-PR esclarece possibilidades em parcerias de oportunidades de negócios por estatais. 9 abr. 2025. Disponível em: https://zenite.com.br/2025/04/09/tce-pr-esclarece-possibilidades-em-parcerias-de-oportunidades-de-negocios-por-estatais/
SERPRO. Catálogo Serpro Multicloud. Disponível em: https://loja.serpro.gov.br/multicloud
SERPRO. Programa de Transformação Digital em Municípios Brasileiros. Brasília, 2025. Disponível em: https://www.serpro.gov.br/menu/noticias/noticias-2025/serpro-lanca-programa-para-promover-a-transformacao-digital-em-municipios-brasileiros
