Imagine abrir seu aplicativo de fotos, subir uma selfie e, em poucos segundos, se ver retratado como um personagem saído diretamente de A Viagem de Chihiro. Mágico, não é? Essa é a proposta de diversas ferramentas baseadas em inteligência artificial (IA) que estão bombando nas redes sociais, especialmente por imitarem com grande precisão o estilo de animação do Studio Ghibli. Mas, por trás da magia, há um enredo jurídico complexo e digno de uma análise mais atenta. Afinal, até que ponto essa inspiração é legal?

Em março de 2025, a internet foi tomada por imagens criadas por IA que reproduzem com fidelidade surpreendente o estilo artístico do Studio Ghibli. Usuários de redes como LinkedIn, Instagram e TikTok postavam versões de si mesmos no universo estético das obras de Hayao Miyazaki. A ferramenta que gerava essas imagens, baseada em modelos como o DALL-E, foi impulsionada por prompts como “Ghibli-style AI portrait”.

Essa não foi a primeira vez que uma IA causou esse tipo de rebuliço. Em 2023, casos semelhantes envolveram a geração de músicas com vozes de artistas como Drake e The Weeknd, bem como a criação de imagens “no estilo” de artistas plásticos vivos, sem qualquer autorização. Isso gerou processos e uma onda de preocupação entre criadores, editoras e empresas do setor criativo.

Não por acaso, o debate sobre regulação da IA se intensificou globalmente. No Brasil, ele encontra solo fértil, principalmente diante de um ecossistema criativo pujante e uma legislação ainda em adaptação aos desafios tecnológicos.

O incômodo com a IA não é recente. Em 2016, Hayao Miyazaki, o aclamado diretor do Studio Ghibli, assistiu a um vídeo onde uma IA criava movimentos de um corpo animado. Sua reação foi direta: considerou o experimento um “insulto à vida”. Para ele, o trabalho artístico não pode ser substituído por algoritmos que ignoram a empatia e a intenção humana por trás de cada gesto.

Anos depois, ver sua obra ser replicada digitalmente por IA, sem envolvimento criativo humano, parece apenas confirmar seu alerta precoce. Essa inquietação, compartilhada por inúmeros artistas ao redor do mundo, também ressoa entre autores brasileiros, que questionam até que ponto suas obras estão protegidas frente a essa nova realidade tecnológica. Diante de um cenário em que algoritmos são capazes de absorver estilos, reproduzir traços característicos e gerar imagens com alto grau de similaridade estética, muitos criadores se perguntam: há respaldo jurídico suficiente para salvaguardar sua identidade artística e evitar o apagamento de sua autoria?

No Brasil, esse movimento regulatório já está em curso. O Congresso discute o Projeto de Lei 2.338/2023, que propõe um marco jurídico para o uso da inteligência artificial no país. A proposta legislativa busca estabelecer diretrizes para garantir que o uso dessas tecnologias esteja alinhado a princípios como transparência, responsabilidade e respeito aos direitos fundamentais. Entre os pontos mais relevantes estão justamente a responsabilidade civil por danos causados por IA e a proteção de direitos como imagem e propriedade intelectual.

Nessa perspectiva, a Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998) apresenta um conjunto importante de salvaguardas para obras artísticas, protegendo expressamente criações fixadas em suporte tangível, como desenhos, personagens e cenários. No contexto das animações do Studio Ghibli, isso inclui personagens icônicos como Totoro, Chihiro, Haku, Kiki e o Catbus, cujas formas, traços e personalidades são protegidas como obras intelectuais únicas e inconfundíveis. No entanto, o estilo artístico, enquanto conjunto de elementos estéticos e técnicos que compõem a linguagem visual de um autor ou estúdio, não é, por si só, objeto de proteção direta pela legislação. Ele é visto, doutrinariamente e na prática jurídica, como uma forma genérica de expressão, cuja apropriação por terceiros é mais difícil de caracterizar como infração.

Isso não significa, contudo, que o uso irrestrito de tais elementos seja isento de riscos jurídicos. A apropriação de aspectos específicos e reconhecíveis de uma obra, sobretudo quando utilizados de maneira reiterada ou com potencial de confundir o público quanto à origem ou autoria do conteúdo, pode sim configurar uma violação de direitos autorais. O contexto, o grau de similaridade e a finalidade do uso serão determinantes nessa análise.

Além disso, a Lei da Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996) oferece proteção às marcas e aos sinais distintivos utilizados com finalidade comercial, o que se revela particularmente relevante nos casos em que o nome “Ghibli” é empregado como elemento promocional em serviços baseados em IA. A utilização de termos como “Ghibli-Style AI” ou nomes similares pode ensejar responsabilização, não apenas por uso indevido de marca registrada, mas também por configurar concorrência desleal, especialmente quando há possibilidade de associação indevida com o estúdio original.

Portanto, ainda que o ordenamento jurídico brasileiro não tenha uma previsão específica para a proteção de estilos artísticos frente à atuação de inteligências artificiais, é possível, a partir da combinação de dispositivos legais existentes, encontrar fundamentos sólidos para a proteção de criadores e detentores de direitos. O desafio está em aplicar essas normas com sensibilidade às particularidades do ambiente digital e à dinâmica acelerada da inovação.

Nesse cenário de constantes transformações, a inteligência artificial representa uma revolução criativa com potencial imenso: democratiza o acesso à criação visual, estimula a experimentação e redefine os limites da produção artística. E, apesar de ainda não alcançar a profundidade emocional e simbólica que transborda dos traços manuais de um estúdio como o Ghibli, ela também carrega seu próprio valor: o de ampliar possibilidades, inspirar releituras e desafiar os contornos da autoria tradicional. No entanto, quando ultrapassa as fronteiras do respeito aos direitos autorais, à imagem e à identidade de marcas, ela deixa de ser ferramenta e passa a ser risco.

O desafio jurídico contemporâneo é encontrar um ponto de equilíbrio entre a inovação tecnológica e a proteção aos criadores. Afinal, a beleza do estilo Ghibli não está apenas na imagem, mas na intenção poética por trás de cada traço. E talvez seja justamente nessa tensão entre técnica e emoção que reside o convite à coexistência: enquanto a IA amplia horizontes, a sensibilidade humana continua sendo o fio condutor da verdadeira autenticidade artística.

 

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