O mercado de Internet das Coisas (IoT) está atravessando uma transformação fundamental. O paradigma inicial, focado na coleta massiva de dados por dispositivos passivos e seu posterior envio para a nuvem para análise, está sendo suplantado por uma arquitetura muito mais dinâmica e inteligente. A convergência da Inteligência Artificial (IA) com a IoT, cunhada como AIoT, representa uma mudança de um modelo reativo para um proativo. A IA não é mais apenas uma ferramenta de análise de big data aplicada a posteriori; ela está sendo inserida em cada camada da arquitetura de IoT, desde o hardware do dispositivo até o núcleo da rede de comunicação.

No Brasil, o mercado de IoT atravessa um momento de expansão extraordinária, com previsões que apontam para um crescimento de US$ 18,41 bilhões em 2024 para US$ 99,34 bilhões em 2033, representando uma taxa de crescimento anual composta (CAGR) de 17,8%, conforme relatório do IMARC. Este crescimento posiciona o Brasil como um dos mercados mais promissores da América Latina para tecnologias conectadas, e a integração entre IoT e Inteligência Artificial representa a próxima evolução tecnológica. Pesquisa da ABINC e TI Inside revela que 81,7% das empresas fornecedoras de soluções IoT já oferecem (38%) ou desenvolvem (43,7%) aplicações com IA embarcada.

Esta evolução redefine a cadeia de valor, deslocando o foco da simples conectividade para a entrega de soluções automatizadas e inteligentes, que podem ser incorporadas por prestadoras de telecomunicações e transformadas em grandes oportunidades de negócios.

Uma análise aprofundada revela que a IA está redefinindo as soluções de IoT em três aspectos críticos, que, em conjunto, formam a base para uma nova geração de serviços e modelos de negócio.

Pilar 1: Inteligência na borda (Edge Intelligence). Tradicionalmente, os dispositivos de IoT funcionavam como meros terminais de coleta, encaminhando dados brutos para processamento centralizado na nuvem. A integração da IA diretamente no hardware do dispositivo (conceito conhecido como Edge AI) transforma esses terminais em participantes ativos e inteligentes do ecossistema. Equipados com algoritmos de aprendizado de máquina, os dispositivos agora podem processar dados localmente, detectar anomalias em tempo real, iniciar respostas imediatas e otimizar seu próprio desempenho sem a necessidade de instruções externas. Este campo tem sido objeto de análise aprofundada: o artigo intitulado Edge AI: A Taxonomy, Systematic Review and Future Directions  de Sukhpal Singh Gill et al. apresenta uma revisão sistemática abrangente sobre Edge AI, explorando os avanços recentes e futuras direções de pesquisa.

Esta descentralização do processamento toca diretamente no ponto das limitações críticas dos modelos centralizados na nuvem. Por exemplo, a latência, um obstáculo intransponível para aplicações de missão crítica, é drasticamente reduzida, pois decisões são tomadas em milissegundos, no local onde os dados são gerados. Isso economiza largura de banda significativa e reduz os custos associados à transmissão de grandes volumes de dados. O resultado é a viabilização de uma nova classe de aplicações que antes eram tecnicamente inviáveis ou economicamente proibitivas. Casos de uso como controle de processos industriais em tempo real, navegação de veículos autônomos, monitoramento remoto de pacientes com respostas imediatas a eventos críticos e sistemas de segurança preditiva tornam-se escaláveis e resilientes, já que sua funcionalidade principal não depende de uma conexão constante e de alta performance com a nuvem.

Tais benefícios são comprovados por projetos reais. O artigo The Intelligent Edge: Where IoT meets Machine Learning, de Dmytro Petlichenko, documenta casos transformacionais, como o Dubai Smart City Initiative que alcançou 83% de melhoria no monitoramento de incidentes, 30% de redução no tempo de resposta de emergência e 20% de diminuição no tempo de deslocamento através de dispositivos Edge AI que monitoram padrões de tráfego e detectam incidentes automaticamente.

Pilar 2: Inteligência na aplicação (Inteligência Preditiva e Auditável). À medida que a inteligência se desloca para a borda, a camada de aplicação evolui de um simples painel de visualização de dados para um centro de coordenação estratégica. A IA enriquece esta camada ao introduzir três atributos essenciais: repetibilidade, auditabilidade e automação. Juntos, esses atributos constroem a confiança necessária para que as organizações deleguem decisões críticas a sistemas automatizados. Em setores altamente regulados, como saúde e finanças, a capacidade de auditar e explicar as decisões tomadas por um algoritmo de IA (conhecida como IA explicável ou XAI) não é um luxo, mas uma exigência.

Essa demanda por transparência é crítica. Em seu artigo Transparency and accountability in AI systems: safeguarding wellbeing in the age of algorithmic decision-making, parte do estudo The Role of Artificial Intelligence in Everyday Well-Being, o pesquisador Cheong aborda a crescente demanda por IA explicável (XAI), que surgiu como uma área crítica de pesquisa para tornar os sistemas de IA mais interpretáveis para humanos. Ele destaca que técnicas de deep learning são frequentemente consideradas “caixas-pretas” (“black-boxes”) e que essa falta de transparência e explicabilidade representa um desafio significativo para a responsabilização.

Essa confiança permite a implementação de “sistemas de circuito fechado” (closed-loop systems), onde a IA não apenas detecta um problema, mas também age autonomamente para corrigi-lo. Exemplos práticos vão desde a medicina personalizada, onde um dispositivo pode ajustar a dosagem de um medicamento em tempo real com base nos sinais vitais do paciente, até a manutenção preditiva em uma linha de produção, onde um sistema pode identificar o risco de falha de um componente e agendar automaticamente a manutenção.

A manutenção preditiva é um caso de uso transformacional. Em seu artigo AI-Powered Predictive Maintenance in IoT-Enabled Smart Factories (2025), o pesquisador Soumya Naiya detalha como a integração da IA com IoT revoluciona a manutenção preditiva em fábricas inteligentes. Algoritmos de IA analisam em tempo real os vastos volumes de dados coletados por dispositivos IoT (sensores de temperatura, vibração, pressão) para prever com alta precisão potenciais falhas de máquinas e tendências de desempenho, permitindo ações preventivas e otimização de cronogramas de manutenção, reduzindo custos e tempo de inatividade. Além disso, a pesquisa enfatiza a importância da inteligência auditável, focando na explicabilidade do modelo de IA para que as equipes de manutenção compreendam a base das predições.

Essa capacidade de fechar o ciclo de “detectar, decidir e agir” impulsiona uma mudança profunda nos modelos de negócio. As empresas deixam de vender produtos ou serviços isolados (um sensor, um plano de dados) para vender resultados garantidos (tempo de atividade garantido, eficiência energética otimizada, tratamento de saúde personalizado). Na prática, essa transição de modelos baseados em CapEx para modelos baseados em OpEx e serviços de valor agregado representa uma das oportunidades mais significativas na era da AIoT.

Pilar 3: Inteligência na rede (Orquestração Inteligente da Conectividade). O papel mais disruptivo da IA reside na própria infraestrutura de conectividade que sustenta o ecossistema de IoT. As soluções modernas, especialmente as móveis e globais, enfrentam uma complexidade de rede sem precedentes. Dispositivos precisam transitar de forma transparente entre diferentes operadoras de rede móvel (MNOs), múltiplas tecnologias de acesso por rádio (como 5G, 4G, NB-IoT, LTE-M e satélite) e diversas geografias, cada uma com seus próprios acordos de roaming e perfis de desempenho.

É nessa gestão complexa que a IA se torna essencial, conforme aponta o relatório How is AI Being Used Within Network Orchestration?, da Juniper Research (2024). Segundo este relatório, os gastos globais de operadoras de rede móvel em orquestração de rede alimentada por IA estão projetados para atingir USD 20 bilhões até 2028. Cinco serviços-chave impulsionarão esses gastos: Desempenho de Rede, Automação de Rede, Segurança de Rede, Manutenção Preditiva e Suporte ao Cliente. A IA é crucial para a otimização do desempenho da rede, especialmente em Redes de Acesso por Rádio (RANs), melhorando a versatilidade e o gerenciamento de tráfego, além de reduzir erros humanos na automação de rede.

Essa tendência de investimento é corroborada por outros dados de mercado, segundo Analysys Mason (Network Automation And Orchestration Opportunities In 2024). De acordo com a consultoria, o mercado de automação e orquestração de rede (NAO) crescerá a uma Taxa Composta de Crescimento Anual (CAGR) de 9,4% de 2023 a 2028, alcançando USD 16,5 bilhões. Esse crescimento é atribuído à implementação contínua do 5G standalone e às jornadas de transformação digital nativas da nuvem, que demandam maior automação para superar a complexidade da rede. Até 2028, 60% do gasto total será dedicado a 5G, automação de WAN e orquestração multi-domínio. Michelle Lam, analista da Analysys Mason, ressalta que este investimento em automação e orquestração avançadas para 5G visa reduzir o Custo Total de Propriedade (TCO) e desbloquear novas oportunidades de receita com diferenciação de serviços.

A IA oferece uma solução para essa fragmentação entre diferentes operadoras, tecnologias e geografias, atuando como um orquestrador inteligente da conectividade. Em vez de depender de regras estáticas, um sistema de IA pode analisar em tempo real o contexto do dispositivo, o estado da rede e os requisitos de qualidade de serviço (QoS) da aplicação para selecionar dinamicamente a rota mais eficiente para cada pacote de dados. Essa orquestração vai muito além do simples balanceamento de carga; ela cria uma camada de inteligência unificada que compreende e pondera prioridades concorrentes, como latência, largura de banda, custo e cobertura, para tomar a melhor decisão a cada momento.

Para uma operadora de telecomunicações, essa capacidade é o antídoto mais potente contra a comoditização da conectividade, o chamado “dilema do dumb pipe“. Ao incorporar essa inteligência no núcleo da rede, uma operadora pode transformar seu produto principal de um simples canal de dados em um tecido de conectividade adaptável e resiliente. Ela passa a vender não mais um cartão SIM ou um plano de dados, mas um Acordo de Nível de Serviço (SLA) dinâmico e garantido, que assegura o desempenho ótimo para aplicações críticas, independentemente das condições da rede subjacente.

No próximo artigo, “O Cenário Brasileiro: Infraestrutura de Conectividade e Ecossistema de IoT”, aprofundaremos como a expansão do 5G e as iniciativas nacionais estão moldando a AIoT no Brasil, identificando os desafios e as oportunidades específicas para o mercado local.

 

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