Como discutimos no artigo anterior, “A Revolução da AIoT“, a convergência da Inteligência Artificial com a Internet das Coisas está redefinindo os modelos de negócio, migrando o valor para a borda e a orquestração da rede. Para entender como essa transformação se aplica na prática, é fundamental analisar o cenário de infraestrutura de conectividade e ecossistema de IoT do Brasil.

O avanço acelerado do 5G. O Brasil tem demonstrado um progresso notável na implementação da tecnologia 5G. A cobertura nacional superou significativamente as metas estabelecidas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), com a liberação da faixa de 3,5 GHz para todos os 5.570 municípios brasileiros, tornando-os “aptos” a receber a tecnologia 5G standalone muito antes do previsto.

O número de cidades com serviço ativo cresce exponencialmente, já alcançando mais de 70% da população, e a taxa de adoção pelos usuários tem sido mais rápida do que a observada na transição para o 4G. Além disso, a qualidade da rede brasileira se destaca globalmente, com a velocidade média de download via 5G posicionando o país entre os cinco melhores do mundo.

No entanto, uma análise mais aprofundada da cobertura 5G revela um aspecto importante. Existe uma diferença entre um município estar tecnicamente “apto” para receber o sinal e possuir uma cobertura densa, ubíqua e confiável, necessária para aplicações de IoT de missão crítica. O foco do setor está agora se deslocando da fase inicial de “ativar cidades” para o desafio mais complexo e custoso do adensamento da rede — a instalação de um número muito maior de Estações Rádio Base (ERBs) para garantir a cobertura e a capacidade. Este processo enfrenta obstáculos significativos, principalmente a heterogeneidade das legislações municipais sobre a instalação de antenas, que cria um mosaico regulatório complexo e atrasa a expansão.

Redes dedicadas ao IoT. Paralelamente à expansão do 5G, operadoras brasileiras estão investindo na implementação de redes dedicadas à IoT, conhecidas como Low Power Wide Area Networks (LPWANs), como NB-IoT (Narrowband IoT) e LTE-M (Long-Term Evolution for Machines). Essas redes já estão ativas em centenas de cidades e são projetadas especificamente para conectar um número massivo de dispositivos de baixo custo, que consomem pouca energia e transmitem pequenos volumes de dados. A própria Anatel já está estabelecendo requisitos de certificação para equipamentos que utilizam essas tecnologias, um claro indicador da maturidade e da importância estratégica desse mercado.

A Anatel tem atualizado ativamente a regulamentação para acompanhar as novas tecnologias de IoT. Através do Ato nº 2105, de fevereiro de 2025, a agência modernizou os requisitos técnicos para a certificação de equipamentos, incorporando padrões emergentes como o 5G NB-NTN, que integra a conectividade NB-IoT a redes de satélite para viabilizar o uso em áreas remotas. A norma também abrange o 5G RedCap, uma especificação de menor complexidade e custo para dispositivos como wearables e sensores, e o 4G LTE Cat 1bis, uma evolução mais econômica para aplicações de rastreamento. Essa regulamentação complementa atos anteriores, como o Ato nº 630 de 2019, que tornou obrigatória a certificação para dispositivos NB-IoT e Cat. M1.

É fundamental compreender que as redes LPWAN não são concorrentes do 5G; são tecnologias complementares. Enquanto o 5G atende a aplicações que exigem alta largura de banda e baixa latência (como vídeo em tempo real e controle de robôs), NB-IoT e LTE-M são ideais para sensores agrícolas, medidores inteligentes de água e energia, rastreadores de ativos logísticos e outros dispositivos que precisam operar por anos com uma única bateria.

A existência dessa infraestrutura de conectividade multicamada (5G para alta performance e LPWAN para IoT massiva) torna o conceito de “orquestração de rede por IA”, não apenas uma possibilidade teórica, mas uma necessidade estratégica imperativa. O valor diferencial de uma operadora de telecomunicações residirá em sua capacidade de oferecer uma plataforma unificada e inteligente que gerencie de forma transparente as necessidades de conectividade de um dispositivo através de todo esse espectro de redes, otimizando dinamicamente por custo, consumo de bateria e desempenho, de acordo com os requisitos da aplicação em tempo real.

O Plano Nacional de IoT. A publicação do Decreto nº 9.854 em 2019, que instituiu o Plano Nacional de Internet das Coisas, foi um marco para o desenvolvimento tecnológico do país. Elaborado a partir de estudos em parceria com o BNDES, o plano estabelece uma estratégia clara para fomentar a implementação e o desenvolvimento da IoT no Brasil. A governança é exercida pela Câmara de Gestão e Acompanhamento do Desenvolvimento de Sistemas de Comunicação Máquina a Máquina e Internet das Coisas (Câmara IoT), um fórum multissetorial que articula as ações entre governo, setor privado e academia.

O plano não apenas define objetivos amplos, como a melhoria da qualidade de vida e o aumento da produtividade, mas também identifica quatro ambientes prioritários para investimento e desenvolvimento: saúde, cidades inteligentes, indústrias e agronegócio. Essa priorização é estratégica, pois foca em setores onde o Brasil já possui empresas consolidadas e grandes demandas internas que podem ser alavancadas para desenvolver inovações locais.

Apesar do direcionamento estratégico do governo, cada vertical prioritária apresenta um conjunto único de oportunidades e desafios que precisam ser considerados:

  • Agronegócio: O setor é um dos mais promissores, com um enorme potencial para ganhos de eficiência através de soluções de IoT para irrigação inteligente, monitoramento de safras e gestão de rebanhos. O principal desafio, no entanto, é a conectividade. A vasta extensão territorial do Brasil e a localização das áreas produtivas em regiões rurais e remotas tornam a falta de infraestrutura de telecomunicações um obstáculo crítico. Esta lacuna representa uma oportunidade direta para operadoras que possam oferecer soluções híbridas, orquestrado por uma plataforma de gerenciamento inteligente.
  • Indústria 4.0: A demanda por automação, monitoramento de ativos e manutenção preditiva é forte e crescente no setor industrial brasileiro. A implementação de soluções avançadas, no entanto, depende de conectividade de altíssima confiabilidade e baixa latência, uma das promessas do 5G.
  • Cidades Inteligentes e Saúde: Ambas as áreas têm o potencial de impactar diretamente a qualidade de vida da população e a eficiência dos serviços públicos. Os desafios aqui são menos tecnológicos e mais relacionados à governança. Essas aplicações lidam com dados públicos e sensíveis, levantando questões complexas de cibersegurança, conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e a necessidade de interoperabilidade entre sistemas de diferentes esferas governamentais e fornecedores.

Neste contexto, o desafio da infraestrutura pode ser ressignificado. Para uma operadora de telecomunicações, essa não é apenas uma barreira, mas uma oportunidade de negócio fundamental. Uma empresa que consiga utilizar a IA para oferecer uma solução de conectividade resiliente e multi-tecnologia, que abstraia a complexidade da infraestrutura subjacente para o cliente final, está resolvendo uma das dores mais agudas do mercado. A proposta de valor se desloca da venda de conectividade para a venda de confiabilidade e simplicidade.

A próxima e última parte desta série, “Posicionamento Estratégico no setor de telecomunicações: da comoditização à orquestração de valor”, aprofundará como as operadoras de telecomunicações podem capitalizar essas oportunidades, redefinindo seu papel na cadeia de valor da AIoT.

 

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