Era 1978…
Imagine a cena. Um motorista sai de Belo Horizonte rumo ao Rio de Janeiro com a família. Não existem Waze, GPS, celular ou internet. Mas ele não se preocupa. No porta-luvas, carrega o mapa rodoviário do Touring Club do Brasil, cuidadosamente dobrado, marcando cada estrada e ponto de apoio. Se tiver um pneu furado, basta acionar a assistência 24 horas. Se precisar de um hotel no caminho, tem desconto em toda a rede credenciada. Se quiser renovar documentos, o Touring resolve.
O Touring não era apenas um clube. Era um companheiro de estrada, um ecossistema completo. No Brasil, o Touring Club chegou em 1923, numa época em que pouquíssimos abastados podiam ter um carro na garagem. Focado em serviços automotivos e turismo, atingiu seu auge nas décadas de 1960 e 70, alcançando mais de 300 mil associados e uma rede impressionante de postos de combustíveis e serviços espalhados por todo o país, em mais de 220 cidades. Além disso, mantinha hotéis próprios e credenciados, oficinas conveniadas e até campings.
Para seus milhares de sócios, oferecia um portfólio exclusivo de serviços: guincho em caso de defeito com assistência 24 horas, pequenos serviços mecânicos, venda de peças e acessórios, borracheiros e chaveiros em postos fixos ou móveis, promoção de excursões e cruzeiros marítimos, autoescolas, emissão de Carteira Internacional de Habilitação, atendimento jurídico e serviços de despachante, entre outros.
O Touring Club do Brasil também foi pioneiro: foi o primeiro órgão a emitir a carteira nacional de habilitação, na década de 1930, por meio da criação da “Caderneta de Tráfego Interestadual”. Até então, os documentos tinham validade apenas municipal. Na mesma época, ajudou a implantar as primeiras leis de trânsito no país.
Quem exibia o brasão do Touring Club no carro ostentava status e segurança. Sabia que poderia viajar pelo Brasil com a tranquilidade de ter suporte em qualquer lugar – da documentação do veículo ao guincho em caso de emergência, passando por mapas, oficinas e hospedagem.
Nos Estados Unidos, a AAA (American Automobile Association) cumpria (e ainda cumpre) o mesmo papel. Criada em 1902, conta hoje com mais de 60 milhões de associados. Lojas físicas espalhadas por praticamente todos os estados oferecem serviços que vão da renovação da CNH à compra de seguros, da consultoria de roteiros personalizados ao financiamento de veículos. É a maior rede de assistência rodoviária do país.
Agora avance para 2025. Você, motorista ou viajante, está melhor atendido hoje? Ou tem a sensação de que precisa costurar sozinho cada etapa da sua jornada?
Diners Club: o cartão que entregava a jornada completa
Nos anos 1970 e 1980, o Diners Club também oferecia uma experiência integrada de ponta a ponta para seus clientes. Mais do que um cartão de crédito, o Diners proporcionava benefícios que iam muito além da transação financeira: transfers gratuitos das capitais aos principais aeroportos, acesso a salas VIP exclusivas (muito antes das companhias aéreas democratizarem esse benefício), serviços de concierge, reservas em restaurantes e hotéis, seguros diferenciados e vantagens únicas em companhias aéreas.
Era um cartão que compreendia a jornada do consumidor como um todo – e, por isso, era visto como um verdadeiro passaporte para um estilo de vida. No entanto, assim como o Touring, o modelo do Diners foi perdendo força e espaço com o tempo, incapaz de se sustentar financeiramente e competir com emissores que passaram a priorizar escala e benefícios de custo mais baixo.
Benefícios rasos: a ilusão da fidelidade
O consumidor moderno vive cercado de aplicativos, cartões, programas de pontos e clubes de fidelidade. Mas sua experiência é cada vez mais fragmentada. Em setores como automotivo e turismo, a indústria parece ter se acomodado em entregar benefícios superficiais.
Veja o caso dos programas de fidelidade automotiva. Alguns programas ligados a postos de gasolina se limitam a cashback ou a permitir a troca de pontos por um café ou um pão de queijo na loja de conveniência. Nada que remeta à jornada real do motorista. Não existe integração com a rotina de manutenção do carro em suas redes de serviços lubrificantes, tampouco com benefícios relevantes em seguro automotivo ou na revenda do veículo.
Os consumidores querem – e precisam – de muito mais. Querem sentir que fazem parte de um ecossistema que os entende, apoia e recompensa em cada etapa da vida com o carro. Querem conveniência, segurança, valorização do bem e serviços relevantes conectados ao seu cotidiano.
Mas o que entregamos? Pontos que expiram, descontos irrelevantes, campanhas promocionais. Um oceano de transações rasas.
Setor Automotivo: o maior oceano de oportunidades não exploradas
A jornada do motorista não termina na compra do carro – ela apenas começa. Mas montadoras, redes de combustível, bancos e bandeiras ainda focam apenas no momento da venda, deixando o cliente por conta própria no restante do ciclo.
O resultado é um consumidor que precisa lidar sozinho com múltiplos canais: busca o carro em um marketplace, fecha financiamento com um banco, contrata seguro em outra empresa, leva o veículo a oficinas independentes e, anos depois, tenta vender sem apoio de quem o vendeu.
Enquanto isso, um setor que movimenta mais de R$ 400 bilhões por ano no Brasil, considerando compra, manutenção e serviços (Anfavea/2023), permanece desintegrado. Apenas 12% dos motoristas trocam de carro dentro da mesma marca. Fidelidade praticamente zero.
E se houvesse um ecossistema capaz de acompanhar o motorista do início ao fim? Que integrasse: financiamento, leasing e consórcio; manutenção preventiva e corretiva; seguro automotivo flexível; benefícios reais em postos de combustível; e apoio na revenda do carro usado.
Hoje, essa oportunidade está sendo desperdiçada. Montadoras, bancos e redes de combustível insistem em atuar como ilhas. O consumidor quer um ecossistema – mas recebe cafezinho grátis e pães de semolina com desconto…
Turismo: o abismo da jornada do viajante
Se a situação no setor automotivo é decepcionante, no segmento de viagens a lacuna é quase um abismo. A jornada do viajante – seja a turismo ou a negócios – é complexa e envolve múltiplas etapas:
- Planejamento: pesquisa de destinos, definição de roteiros, comparação de preços de passagens e hospedagem.
- Reserva: compra de bilhetes aéreos, hotéis, transporte terrestre, seguro viagem, ingressos de atrações.
- Pré-viagem: traslados ao aeroporto, check-in, documentação.
- Aeroporto: salas VIP, fast track no raio-x, tempo de espera.
- Estadia no destino: transporte local, reservas em restaurantes, experiências culturais, imprevistos.
- Pós-viagem: prestação de contas (para viagens corporativas), avaliação do serviço, planejamento do próximo destino.
Quem está cuidando de tudo isso de ponta a ponta hoje? Ninguém.
O viajante tem de costurar sozinho todas essas etapas, lidando com múltiplos aplicativos, cadastros e regras que mudam a cada dia. O melhor exemplo são as salas vip. Quem entende como realmente funcionam e quem tem direito ao uso? Mesmo cartões premium e programas de fidelidade de companhias aéreas oferecem apenas pedaços dessa jornada.
Veja exemplos:
- O portador de um cartão de alta renda pode ter acesso a uma sala VIP, mas precisa comprar a passagem em outro canal, reservar hotel em outro, contratar seguro em mais um, baixar aplicativos de transporte no destino.
- Programas de milhagem brasileiros focam em acúmulo de pontos em passagens aéreas, mas oferecem pouca ou nenhuma integração com reservas de experiências, traslados ou apoio em imprevistos.
- Até benefícios como fast track em aeroportos são fragmentados, restritos a determinados aeroportos ou bandeiras de cartão, obrigando o viajante a navegar por múltiplas regras e aplicativos.
Por que não existe um produto que conecte tudo? Um único ecossistema que permita planejar e reservar toda a viagem em uma só plataforma (passagens, hotéis, experiências); que garanta apoio logístico do início ao fim (valet ou traslado para o aeroporto, fast track, salas VIP, transporte no destino); que centralize benefícios financeiros (cashback ou pontos que façam sentido, seguros robustos sem burocracia, parcelamento inteligente).
Esse produto não existe no Brasil. Mas deveria.
Lá fora, já está acontecendo
Enquanto insistimos em benefícios rasos, players internacionais já entenderam o valor de integrar a jornada.
Na Ásia, poucos exemplos são tão emblemáticos quanto o Grab, criado em 2012 em Cingapura. O que começou como um simples aplicativo de transporte se transformou em um verdadeiro super app usado por mais de 34 milhões de usuários ativos mensalmente em 8 países do Sudeste Asiático. O Grab entendeu cedo que fidelidade não se conquista com pontos rasos, mas sim resolvendo problemas reais da vida do consumidor. Hoje, ele está presente em praticamente todas as etapas do dia a dia: transporte, delivery de comida com o GrabFood, entrega de pacotes com o GrabExpress, compras no supermercado e serviços financeiros com o GrabPay, que permite pagar contas, transferir dinheiro, contratar seguros, usar cartões co-branded e até acessar microcrédito.
Essa combinação de serviços tornou o Grab indispensável. Em países como Cingapura e Indonésia, é quase impossível viver sem ele. Do transporte escolar dos filhos ao jantar de sexta-feira à noite, passando pelo pagamento das contas mensais, tudo pode ser resolvido em um único aplicativo. Com um valor de mercado estimado em US$ 13 bilhões, o Grab mostra que um super app bem estruturado consegue fazer exatamente o que falta nos programas de fidelidade brasileiros: costurar a jornada do consumidor de ponta a ponta, criando relevância, dados e monetização em várias frentes.
O Gojek é outro caso emblemático. Fundado em 2010 na Indonésia como um serviço de mototáxi, rapidamente percebeu que poderia resolver muito mais do que transporte. Hoje, está presente em 4 países do Sudeste Asiático (Indonésia, Tailândia, Vietnã e Cingapura), com mais de 38 milhões de usuários ativos anuais. Oferece mais de 20 serviços diferentes: transporte de passageiros, delivery de comida com o GoFood, entrega de pacotes com o GoSend, serviços financeiros com o GoPay, recarga de celular, contratação de serviços domésticos e até cortes de cabelo em domicílio.
Na Indonésia, o Gojek é tão onipresente que muitos o descrevem como “impossível de viver sem”. Em 2021, fundiu-se com a Tokopedia (uma gigante do e-commerce indonésio) e deu origem ao grupo GoTo, avaliado em mais de US$ 28 bilhões, consolidando-se como um verdadeiro hub da economia digital. O Gojek não entrega apenas cashback ou descontos: ele faz parte da rotina de milhões de pessoas.
E no Brasil, quem está tentando algo parecido?
Aqui, ainda estamos longe de ter um super app com a força de Grab ou Gojek, mas alguns movimentos começam a aparecer:
- Inter e C6 Bank criaram marketplaces robustos dentro de seus aplicativos, com oferta de passagens aéreas, reservas de hotéis, cashback em compras e serviços financeiros integrados. Mas ainda são pontos desconectados, sem a visão de ecossistema do dia a dia do consumidor.
- Magalu e Mercado Pago buscam centralizar pagamentos, e-commerce e serviços, mas esbarram em baixa penetração em categorias como transporte e turismo.
- 99Pay e iFood são tentativas de super apps a partir de transporte e delivery, respectivamente. A 99 integra transporte, carteira digital e até investimentos, mas com pouca conexão emocional com a jornada completa do consumidor. O iFood expande para crédito, assinatura e marketplace, mas seu core ainda é alimentação. A anunciada aquisição de 20% da CRMBonus, ainda sujeita à aprovação de órgãos reguladores, reforça a aposta em tecnologia como motor de crescimento para o varejo. Sem falar na comentada aquisição da Alelo, que fortaleceria o ecossistema financeiro do iFood, potencializando serviços de carteira digital e fidelização.
- Webmotors + Santander é um exemplo interessante no setor automotivo. Além de classificados de veículos, oferece financiamento, inspeção veicular e serviços pós-venda. Mas, novamente, a integração é superficial e restrita a um segmento específico e não cobre a jornada completa do motorista. O consumidor ainda precisa buscar por conta própria serviços como seguro automotivo, manutenção periódica, assistência 24h, compra de peças e acessórios, abastecimento, programas de fidelidade e apoio na revenda futura do veículo.
Esses movimentos mostram potencial, mas ainda estamos falando de iniciativas fragmentadas, muito distantes do impacto que Grab e Gojek têm em seus mercados. Falta ousadia para criar um ecossistema de fato, que seja indispensável no dia a dia do consumidor, agregando conveniência real, serviços relevantes e monetização sustentável.
O cartão de crédito como hub – e não como acessório
O cartão de crédito está presente em todas as etapas da vida do consumidor. Poderia ser o orquestrador da jornada, conectando dados, benefícios e serviços.
Mas, no Brasil, o que vemos são produtos co-branded limitados ao parceiro principal. Benefícios rasos. Pouco ou nenhum uso inteligente de dados. A grande maioria dos programas ainda oferece vantagens desconectadas da vida real do cliente.
Se montadoras, bancos, bandeiras e redes de serviços quisessem, poderiam criar ecossistemas completos. O cartão seria a peça central.
Quem vai ter coragem de costurar as pontas soltas?
Já provamos no passado que é possível. Touring Club, AAA e Diners Club foram pioneiros em criar ecossistemas integrados muito antes da era digital, oferecendo experiências completas que acompanhavam o consumidor em cada etapa da sua vida. Hoje, temos dados em abundância, tecnologia avançada e a inteligência artificial capazes de personalizar jornadas e reduzir custos operacionais – algo que aqueles pioneiros não tinham.
Mas o consumidor de 2025 não quer mais benefícios rasos. Quer se sentir parte de um ecossistema que o conhece, apoia e recompensa de forma real. Quer conveniência, segurança, relevância e benefícios que façam sentido no seu dia a dia.
A pergunta que precisa ser feita é: quem terá a coragem – e a visão – de costurar as pontas soltas e liderar essa transformação no Brasil? Montadoras, bancos, bandeiras, fintechs e redes de serviços vão continuar competindo isoladamente, entregando experiências fragmentadas, ou finalmente se unirão para construir ecossistemas completos e sustentáveis?
Porque uma coisa é certa: quem der o primeiro passo não apenas conquistará a fidelidade do consumidor, mas também terá nas mãos a chave para mercados bilionários que hoje estão dispersos.