A pandemia de COVID-19 representou um divisor de águas na inclusão digital da população 60+, impulsionando a adoção de smartphones e serviços online por necessidade e isolamento. Foi um momento transformador no tema inclusão digital. Agora, uma nova e evidentemente infeliz janela de oportunidade se apresenta impulsionada pela recente crise das fraudes nos descontos do INSS. Este cenário, embora lamentável, oferece um terreno fértil para impulsionar novamente a entrada no mundo digital deste importante segmento da população. Dados de posse de smartphones em 2023 já apontavam 76% de penetração na população 60+ de todas as classes sociais.
A necessidade de verificar a existência de descontos irregulares ou não autorizados em seus benefícios, utilizando os canais digitais como ferramenta de proteção, surge como um efeito colateral poderoso e motivador para beneficiários de aposentadorias, pensões, BPC e outros. Se já usavam um smartphone de terceiros ou se usavam o seu próprio apenas para trocas de mensagens de voz pelo Whats app, agora vão experimentar outra utilidade. A urgência em se proteger financeiramente e a praticidade dos aplicativos para essa finalidade criam um contexto em que a resistência à tecnologia será significativamente reduzida. Além de conferir a elegibilidade ou não de descontos no seu contracheque, passarão a fiscalizar de tempos em tempos os seus extratos.
Para compreendermos a dinâmica dessa aceleração, podemos recorrer à Teoria de Aprendizagem Experiencial de David Kolb. A teoria postula que a aprendizagem é um ciclo que envolve quatro estágios:
- Experiência Concreta: O indivíduo vivencia uma situação específica – neste caso, a preocupação com possíveis fraudes no INSS e a necessidade de verificar seus benefícios.
- Observação Reflexiva: O indivíduo reflete sobre essa experiência, buscando informações e considerando as opções disponíveis para solucionar o problema. A recomendação de utilizar aplicativos e canais digitais para essa verificação se apresenta como uma solução viável.
- Conceptualização Abstrata: O indivíduo forma conceitos e generalizações a partir de suas reflexões. Ele começa a entender que um smartphone e seus aplicativos podem ser ferramentas úteis e seguras para gerenciar sua vida financeira e se proteger contra fraudes.
- Experimentação Ativa: O indivíduo testa esses novos conceitos em situações práticas. Ele adquire um smartphone (se ainda não o possui) ou aprende a utilizar os aplicativos relevantes para verificar seus benefícios no INSS. O sucesso nessa experimentação reforça a aprendizagem e a adoção contínua da tecnologia.
A crise das fraudes no INSS atua diretamente no primeiro estágio da teoria de Kolb, gerando uma experiência concreta carregada de motivação intrínseca. A necessidade de proteger seus recursos financeiros impulsiona o indivíduo a buscar soluções, e o smartphone emerge como uma ferramenta poderosa para essa finalidade. A facilidade de acesso à informação via interface digital e a possibilidade de realizar verificações de forma remota e imediata contrastam com as complicações, burocracia e a lentidão dos canais presenciais.
Para que essa inclusão seja efetiva e sustentável, é importante abordarmos os desafios inerentes ao web design e ao app design para a construção de jornadas digitais fluidas e intuitivas para o público 60+. Mesmo em instituições que declaram ter desenvolvido soluções “adequadas”, frequentemente nos deparamos com interfaces que negligenciam as peculiaridades das Interfaces do Usuário 60+. Ainda existe um desconhecimento significativo por parte das equipes de desenvolvimento em relação às questões naturais do envelhecimento nos cinco sentidos e o impacto destes nas interações digitais. Uma visita aos conceitos do Aging in Market que desenvolvemos na SeniorLab ajudaria bastante.
Detalhes como a presbiopia, que dificulta a leitura de textos pequenos e com baixo contraste; a redução da sensibilidade tátil, que pode impactar a precisão em toques na tela; a diminuição da acuidade auditiva, que torna alertas sonoros menos eficazes; a possível alteração na percepção de cores, que compromete a identificação de elementos importantes da interface que pode influenciar a percepção geral e a memorização de informações associadas a determinados contextos digitais.
Vale revisitar reflexões que já fiz nesta coluna e que se impõem ao setor mobile para ação imediata em diversas frentes:
- Priorização da pesquisa e testes de navegação e interação com usuários 60+ envolvendo este público em todas as etapas do desenvolvimento para identificar suas reais necessidades e dificuldades.
- Adoção de diretrizes de design de acessibilidade, de orientações do Aging in Market e das Heurísticas de Nielsen como padrão, garantindo o cumprimento de critérios que abordam as necessidades visuais, auditivas, motoras e cognitivas dos usuários mais velhos.
- Investimento em equipes multidisciplinares com conhecimento em gerontologia e design inclusivo, integrando a expertise sobre o envelhecimento humano ao processo de desenvolvimento de produtos e serviços digitais.
- Desenvolvimento de interfaces e aplicativos verdadeiramente intuitivos e acessíveis, focados nas características específicas da população 60+, com letras maiores, alto contraste, navegação simplificada, comandos de voz opcionais, tutoriais claros e feedback visual e tátil adequado. Eu e Álvaro Flores tratamos disto no livro SHOPPER60+.
- Oferta de planos e serviços customizados que considerem o uso de dados e as funcionalidades mais relevantes para este público, como segurança bancária e acesso a serviços governamentais, com interfaces adaptadas. Importante para contornar a barreira de entrada e dos ofensores ligados à insegurança.
- Investimento em educação e suporte técnico especializado para auxiliar na familiarização com os dispositivos e aplicativos, dissipando o medo e a insegurança em relação à tecnologia, com materiais de apoio em formatos acessíveis.
- Parcerias estratégicas com instituições financeiras e órgãos governamentais para promover a adoção de canais digitais seguros e confiáveis, reforçando a confiança dos usuários, com interfaces unificadas e consistentes. A Internet a partir de 1995 no Brasil iniciou sua presença a aplicação nas empresas assim. Os departamentos financeiros foram os primeiros a utilizarem o internet banking e naturalizarem a Internet no dia a dia das empresas. Efeito similar acontecerá com o uso pessoal por parte dos 60+.
Superar o atual desconhecimento e investir em soluções que realmente considerem as particularidades naturais do envelhecimento é fundamental para construir jornadas digitais que empoderem e incluam. Eu acredito que com a devida atenção e investimento em UI60+, este infeliz evento das fraudes pode se transformar em um catalisador para ampliar a inclusão digital da população 60+, consolidando o mobile como uma ferramenta essencial para a autonomia, a segurança e a participação ativa desta parcela da sociedade conectada.