O Projeto de Lei (2.630/2020), popularmente conhecido como PL das Fake News, aprovado nesta semana pelo Senado, passou por inúmeras modificações até o dia da sua votação. Na comparação com sua versão original, é inegável que houve aperfeiçoamentos importantes, após intensas críticas da sociedade e de especialistas em direito digital, mas o texto ainda guarda pelo menos três pontos polêmicos que precisam ser mais profundamente discutidos, na opinião de especialistas ouvidos por Mobile Time. Listamos abaixo os três, acompanhados de comentários.

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Rafael Pellon, advogado especializado em direito digital e advogado do escritório Pellon de Lima Advogados

1) Poder de moderação. No artigo 12, o PL permite que as redes sociais retirem conteúdos do ar imediatamente, sem notificação prévia aos autores, quando julgarem que há “dano imediato de difícil reparação”, ou risco à segurança da informação ou do usuário; ou violação de direitos de crianças e adolescentes; ou discriminação por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional; ou grave comprometimento da usabilidade, integridade ou estabilidade da aplicação.”

“Isso confere ao provedor de aplicação o poder de julgar e de avaliar conteúdo, o que mata um dos pilares do Marco Civil da Internet, que é a limitação de responsabilidade dos provedores e o reforço do direito do poder judiciário de ter a última palavra. Isso cria um sistema de julgamento de contencioso dentro do provedor, o que é um problema porque a equipe não tem formação para exercer esse poder decisório”, critica Rafael Pellon, advogado especializado em direito digital e advogado do escritório Pellon de Lima Advogados.

Vale lembrar que não há necessidade de uma lei conferindo às redes sociais esse “direito” de retirada de conteúdos que julgarem indevidos. Elas já podem tomar essa medida com base em seus termos de serviços. Há casos recentes e emblemáticos, como quando o Twitter apagou mensagem do presidente Jair Bolsonaro por entender que continha notícia falsa.

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Flávia Lefèvre, do coletivo Intervozes

A advogada Flávia Lefèvre, do coletivo Intervozes, critica que as hipóteses previstas no referido artigo do PL são pouco objetivas e recorda que as redes sociais já tomam tais medidas, não raro, com base em análises equivocadas. Nesses casos, tal mecanismo acaba se prestando à censura, alerta.

“Em vez de criar tribunais e fóruns dentro de provedores, por que não criar um juizado especial civil só para essas questões? Hoje o problema é que o judiciário está sobrecarregado e não tem treinamento suficiente”, acrescenta Pellon.

Patricia Peck G. Pinheiro

Patricia Peck é head de direito digital do escritório PG Advogados.

Patrícia Peck, advogada e head de direito digital do escritório PG Advogados, explica que “quando o PL aborda o combate à fraude eletrônica, crimes contra a honra, tráfico de drogas, proteção da criança e do adolescente… a gente não vai resolver todos esses problemas com o Projeto de Lei. Fizemos a lei Carolina Dieckman e não resolvemos todos os problemas de crimes cibernéticos. A proposta do projeto de lei das Fake News é resolver a questão das Fake News. A legislação precisa estar focada, não pode ter muitos artigos e não pode entrar no mérito de descrever muito as tecnologias porque senão a lei fica obsoleta”, diz.

2) Armazenamento de dados sobre envio de mensagens em massa. O PL prevê que os apps de mensageria guardem por três meses os dados sobre o encaminhamento em massa de mensagens. Isso valerá para qualquer mensagem que alcance pelo menos 1 mil usuários e que tenha sido encaminhada por mais de cinco pessoas em um período de três meses. O app precisará registrar os usuários que encaminharam a mensagem, com data e hora do encaminhamento. Essas informações só poderão ser requeridas mediante ordem judicial e somente se a mensagem contiver algum ilícito.

“Este é um ponto crítico, na medida em que teremos milhões de usuários das plataformas sujeitos a serem monitorados. Convenhamos que é muito frequente que uma mesma mensagem seja enviada por mais de cinco usuários em um intervalo de até 15 dias. Porém, isso não significa que essas mensagens sejam potencialmente maliciosas”, comenta Lefèvre.

Christian Perrone

Christian Perrone é pesquisador sênior do ITS

Segundo Christian Perrone, pesquisador sênior da área de direito de tecnologia do ITS e consultor de políticas públicas, guardar a rastreabilidade dessas mensagens pelas empresas de mensageria é algo que se descola do mundo inteiro. “Isso acaba obrigando que essas empresas armazenem ainda mais dados pessoais. Quando é possível ou necessário resguardar e rastrear esses dados você pode estar indiretamente indicando diversos outros dados, inclusive, dados sensíveis dessas pessoas. Imagina uma conta de WhatsApp que serve para auxiliar mulheres sobre abuso sexual. Nesse caso, todas elas podem estar expostas num banco de dados. Parece inocente, mas são informações pessoais e essa parte do PL vai de encontro à LGPD”.

3) Proibição de disparos em massa. O artigo 11 do PL contém uma redação confusa e que pode impactar o mercado de SMS A2P e de WhatsApp Business API. Nele está escrito: “São vedados o uso e a comercialização de ferramentas externas aos provedores de serviços de mensageria privada voltadas ao disparo em massa de mensagens, ressalvada a utilização de protocolos tecnológicos padronizados para a interação de aplicações de internet.” A intenção talvez seja proibir a atuação de provedores piratas de envio de SMS e mensagens em massa por WhatsApp ou qualquer outro mensageiro, mas seria necessário explicar com mais clareza o que se quer dizer com “ferramentas externas aos provedores de mensageria privada”. Os integradores de SMS homologados pelas operadoras móveis e os provedores oficias do WhatsApp Business seriam “ferramentas externas”? Hoje essas empresas são responsáveis por importantes disparos em massa, mas com o devido opt-in do consumidor final, como notificações de uso de cartão, ou de entregas de encomendas, e também o envio de token para acesso a serviços digitais. Também seria preciso esclarecer no projeto de lei o que seriam “protocolos tecnológicos padronizados para a interação de aplicações de internet”. 

Debate

Bruno Bioni

Bruno Bioni é professor do Data Privacy Brasil e especialista em privacidade e proteção de dados

Mas uma das maiores críticas ao PL das Fake News reside na ausência de um debate amplo e profundo em torno dele. Os quarenta e cinco dias de discussão do Projeto de Lei das Fake News, não foram suficientes para a elaboração de um texto consistente, segundo os especialistas ouvidos. Para fins comparativos, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) levou 8 anos até ser votada, assim como o Marco Civil da Internet, cuja discussão perdurou 5 anos e alçou o Brasil ao protagonismo internacional na área. Para Bruno Bioni, professor do Data Privacy Brasil e especialista em privacidade e proteção de dados, a votação acelerada aconteceu porque os políticos são os principais alvos de Fake News e, com a proximidade das eleições municipais, o processo deveria avançar rapidamente para que a lei pudesse ser aplicada a tempo. “É a realidade do dia a dia deles”, disse. “Mas um projeto dessa envergadura não poderia ser discutido em tão pouco tempo”. Bioni lembrou, inclusive, que o texto não passou pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), que seria seu caminho natural, e onde ocorreriam as discussões abertas com sociedade civil, entidades e empresas privadas também.

Pontos positivos

Há também pontos positivos no texto aprovado pelo Senado. Lefèvre destaca a criação do Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet; a obrigatoriedade de os provedores de aplicações publicarem trimestralmente um relatório de transparência; e a proibição de contas de entidades públicas ou de agentes públicos na Internet bloquearem o acesso de cidadãos. Pellon elogia o fato de os deveres previsto na lei valerem somente para aplicações com mais de 2 milhões de usuários, o que garante liberdade para startups e serviços de pequeno porte e alcance reduzido.

Colaborou Isabel Butcher