Flávia Lefèvre Guimarães, advogada especializada em direito digital e do consumidor e representante do coletivo Intervozes e da Coalizão Direitos na Rede

O decreto 10.474, editado na última quarta-feira, 26, pelo Presidente da República, Jair Bolsonaro, para a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), abre a possibilidade de se convocar militares das Forças Armadas para ali trabalharem e exige que os representantes da sociedade civil sejam aprovados pela Presidência da República. As medidas reforçam ainda mais o vínculo já preestabelecido entre a ANPD e a presidência, previsto na lei de criação da LGPD. Flávia Lefèvre, advogada especializada em direito digital e do consumidor e representante do coletivo Intervozes e da Coalizão Direitos na Rede, aponta o vínculo como um claro conflito de interesses.

“Lembro que os poderes públicos também estão sujeitos às obrigações da lei, sendo que são os órgãos públicos que mais coletam e tratam dados pessoais e dados sensíveis dos cidadãos. Basta, para que assim se possa concluir, verificar as atribuições do Gabinete de Segurança Institucional da própria Presidência da República e onde se encontra, inclusive, a ABIN”, diz Lefèvre.

Eduardo Magrani, advogado especialista em direito digital e proteção de dados e presidente do INPD (Instituto Nacional de Proteção de Dados)

Eduardo Magrani, advogado especialista em direito digital e proteção de dados e presidente do INPD (Instituto Nacional de Proteção de Dados), concorda: “O Brasil não está adotando as melhores práticas internacionais, o que inclui ter uma autoridade autônoma e independente. O decreto fala em autonomia, mas a subordinação à Presidência denota contra essa independência da autoridade, porque a lei não é aplicável somente ao setor privado, mas também a órgãos públicos. Por estar ligada à presidência pode ser enviesada ‘by default’. Ou ‘biased by default’. Isso pode reverberar internacionalmente contra o Brasil: a falta de uma autoridade independente faz com que não estejamos adequados ao GDPR?”, questiona.

Christian Perrone, pesquisador sênior da área de direito de tecnologia do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio)

Um ponto apresentado por Christian Perrone, pesquisador sênior da área de direito de tecnologia do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e consultor de políticas públicas, é o fato de o vínculo da ANPD com a presidência trazer o fantasma da discussão de se ela é realmente independe e autônoma. “E qual é a consequência internacional disso? Coloca em risco a entrada do Brasil para a OCDE, ou mesmo uma possível decisão de adequação com o sistema da União Europeia. E, para isso, a autoridade deve ser não só no papel independente, deve efetivamente funcionar de maneira independente e garantir a proteção de dados”, resume o pesquisador.

Marco Konopacki, pesquisador do Laboratório de Governança da New York University (The GovLab)

Marco Konopacki, pesquisador do Laboratório de Governança da New York University (The GovLab) e Fulbright Hubert H. Humphrey Fellow em Políticas Públicas de Tecnologia na Syracuse University, lembra que estar sob o mesmo guarda-chuva da Casa Civil pode ser temporário e que, em dois anos, a ANPD pode se emancipar e tornar-se autônoma. Na leitura do pesquisador, a lei não cria uma autarquia agora, mas, sim, uma figura intermediária, por estar debaixo do guarda-chuva da presidência e não independente, como seria o ideal. “Há um caminho a ser percorrido até essa figura ideal. Talvez seria esperar demais desse governo pensar nesse modelo independente desde já, mas também não acho completamente ruim porque estou imaginando um caminho (a ANPD pode ser independente daqui a dois anos). Pior do que estar vinculada à presidência, seria a nomeação de um conselho desbalanceado e que esteja apenas voltado aos interesses privados, de grandes empresas e que não tenha não tenha a participação da sociedade civil. E, pelo histórico desse governo, isso pode acontecer”, avalia.