No estágio de transformação digital em que estamos, é comum o surgimento de ondas e novidades que surgem como tendências. Uma das mais fortes hoje são os superapps – aplicativos de uma determinada empresa que agregam uma série de serviços, muitas vezes extrapolando os negócios originais. A ideia surgiu e se desenvolveu enormemente na China. Lá, plataformas como WeChat, Alipay e Taobao cresceram de forma exponencial. No Brasil, a ideia está se popularizando. Empresas como Rappi, Magazine Luiza e Banco Inter estão criando ecossistemas para oferecer aos clientes serviços dos mais diferenciados. No superapp do Banco Inter, por exemplo, é possível reservar passagem aérea, abastecer o carro, comprar eletrodomésticos, além, claro, dos serviços bancários que são o negócio principal.

Mas a pergunta que se faz é: será que alguma empresa brasileira algum dia terá um superapp que realmente mereça o adjetivo super?

O modelo chinês

O sucesso chinês se baseia em uma tríade formada por: (1) uma imensa base de clientes, que têm à disposição uma (2) ampla gama de serviços que, por sua vez, fazem com que esses usuários (3) acessem o aplicativo com alto grau de recorrência. Tudo isso é alimentado e alavancado por dados, que são utilizados para intensificar cada vez mais a oferta de serviços, amplificados por um alto grau de personalização e conveniência.

Por trás disso, há um contexto bastante específico. O ponto de partida: os superapps chineses se desenvolveram a partir do vácuo deixado pela proibição das big techs estrangeiras, como Google e Facebook, pelo governo local. Foi nesse amplo espaço que as plataformas surgiram, oferecendo algum tipo de serviço específico e, à medida que cresciam em número de usuários, expandiram a oferta de serviços para incorporar outras funcionalidades ao redor daquela já existente. Um marco que simboliza esse processo foi o lançamento do envelope vermelho de Ano Novo no WeChat, em 2014. Essa funcionalidade permitia que as pessoas presenteassem umas às outras com dinheiro virtual através do app, digitalizando um antigo costume. A partir daí, a incorporação de meios de pagamento e transferência de valores pelo WeChat ajudaram a explicar a transformação de um mercado em que, até 2010, 99% do volume total das transações financeiras ainda eram realizadas em dinheiro vivo, e que hoje tenha reduzido para 41%, dominando as tendências em métodos de pagamento digitais, segundo a McKinsey.

A forma como os chineses lidam com a privacidade também foi fundamental. Uma particularidade relevante é a cultura coletivista do país asiático muito maior do que no ocidente. A ideia do “bem coletivo” fez com que os chineses aceitassem com naturalidade o alto grau de vigilância do governo. Isso, por sua vez, ajudou as empresas a obter dados sobre preferências e hábitos de compras dos clientes, facilitando a adoção de mecanismos pelas plataformas para reduzir fricções na jornada de compra, e até mesmo a sua extensão para outros momentos da rotina do usuário: busca facilitada até mesmo por imagem, browser inicial personalizado, criação de conteúdo com marcas, como minisséries, por exemplo, intensificando cada vez mais uma tendência de junção entre e-commerce e entretenimento. Com isso, os superapps passam a apresentar um novo conceito de viralidade, em que os próprios serviços se tornam conteúdos virais ao suprirem todas as necessidades do cliente, das mais às menos corriqueiras.

Outro ponto interessante sobre os superapps chineses é a forma com que foi estruturada a arquitetura das plataformas, baseada nos chamados miniprograms. Semelhantes a aplicativos em uma app store como conhecemos no ocidente, os miniprograms são pacotes de desenvolvimento formatados para o ambiente do próprio superapp. Eles permitem a ampliação e integração de diversos parceiros, permitindo a criação de um grande ecossistema de negócios. Os miniprograms também permitem uma melhor coleta de informações sobre os clientes, permitindo a otimização de ofertas. Também são fáceis de serem criados. Isso explica como a WeChat chegou a cerca de 2,4 milhões de miniprograms de parceiros diversos. A título de comparação, a Apple Store possui 2,2 milhões de aplicativos.

E no Brasil?

É essencial entender as particularidades chinesas em contraste com o contexto brasileiro. Para começar, nosso mercado sempre foi aberto. Isso tirou a possibilidade do surgimento de empresas brasileiras que ocupassem o lugar das big techs. Além disso, os brasileiros não são tão permissivos quanto os chineses a respeito do uso de dados pessoais. E a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) oferece obstáculos não enfrentados pelas empresas chinesas.

Outra diferença é que os brasileiros são mais familiarizados com o uso do cartão de crédito, com uma penetração muito mais alta do que o mercado chinês de dez anos atrás (cerca de 8%). Estima-se que, até 2022, 60% do consumo familiar brasileiro será realizado via cartão de crédito, segundo a ABECS, o que pode ser uma barreira para a realização de transações dentro dos próprios aplicativos.

Além de aspectos culturais e de regulamentação, há diferenças na forma como as empresas criam os superapps: agregando novos serviços ao adquirirem outras empresas ou adicionando novas funcionalidades em suas plataformas, sem necessariamente construir um verdadeiro ecossistema de negócios. Temos, como exemplos, o WhatsApp Pay, surgindo no aplicativo de mensagens mais popular do Brasil e o Rappi, que oferece serviço de hospedagem. Em casos como esse, pode haver dificuldade em concorrer com serviços ofertados por empresas mais verticalizadas. Será que o Rappi Travel um dia terá um inventário de hotéis melhor do que o do Booking ou Decolar? Um modelo diferente é o da Magalu, que vem adquirindo empresas de diferentes setores para expandir o portfólio de serviços. Entre as aquisições, estão a StealtheLook, do segmento de moda, e AiqFome de delivery, e a plataforma GrandChef voltada para pequenos e médios restaurantes.

Não há fórmula mágica

Considerando todos os pontos, é compreensível que ainda não exista um case bem sucedido fora da China. No caso do mercado brasileiro, é muito difícil prever quem vai vencer a corrida para ser o primeiro superapp de verdade. Alguns cases parecem estar despontando, mas ainda é cedo para dizer quem será bem sucedido. O que se pode apontar é que o sucesso depende de dois fatores: a solução deve agregar valor ao cliente e ser “data driven”, ou seja, que use os dados gerados pela utilização do aplicativo como base para a expansão do negócio. A mera cópia de modelos que foram bem sucedidos em outros mercados, além da busca por uma fórmula mágica tem tudo para resultar numa receita do fracasso.