Vivemos em uma era em que o processamento de dados, principalmente no meio digital, se torna cada vez maior. Diversas informações são criadas a partir das atividades que desempenhamos no dia a dia, bem como coletadas, armazenadas, utilizadas e compartilhadas a todo instante para gerar conveniência a todos nós. Com a Covid-19, testemunhamos um movimento de digitalização ainda mais intenso e que tocou diversos aspectos de nossa vida: educação, trabalho, atividades físicas, socialização e entretenimento passaram a depender muito mais da Internet do que em qualquer outro período da história recente. Nesse contexto, qual o impacto da entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) no dia 18 de setembro?

Muitos entendem que a vigência da lei passou a limitar o tratamento de dados pessoais ou impedir o uso de tecnologias emergentes. No entanto, o próprio texto legal demonstra que essa visão está equivocada. Na nossa visão, a entrada em vigor da LGPD significou um marco importante na instauração de uma nova cultura no cenário nacional: a cultura do uso sustentável de dados pessoais.

Não há como negar que vivemos em um mundo digitalizado: quase 60% da população mundial é formada por usuários ativos da Internet. De acordo com a Domo, mais de 2,5 quintilhões de bytes de dados são criados todos os dias. Só neste ano, a cada minuto, o Twitter ganha 319 novos usuários, são realizadas inscrições para 69 mil vagas no LinkedIn, 150 mil mensagens são compartilhadas no Facebook, 208 mil pessoas participam de reuniões pelo Zoom, 1,3 milhão participam de chamadas de voz ou de vídeo, 5 milhões de buscas no Google são realizadas, e 41 milhões de mensagens são enviadas por WhatsApp.

No ambiente digital, todas as interações e transações envolvem algum tipo de compartilhamento de dados pessoais – seja quando pesquisamos algo na Internet, visitamos sites, compramos um produto, solicitamos um serviço, enviamos um e-mail ou usamos as redes sociais. O compartilhamento de dados é, portanto, essencial para tornar a vida mais fácil e conveniente. Além disso, os dados também são utilizados pelas empresas para tomada de decisão mais inteligente e eficiente. Segundo o relatório “Global Data and Analytics Survey – Big Decisions”, da PwC (maio, 2016), as organizações altamente orientadas a dados (data-driven) apresentam três vezes mais probabilidade de relatar melhorias significativas na tomada de decisões.

É importante destacar que não é apenas o setor privado que coleta, armazena e utiliza dados pessoais para a tomada de decisão inteligente e a entrega de produtos e serviços por meio da Internet, mas também o setor público, que tem feito o mesmo na elaboração estratégica de políticas públicas baseadas em dados e em serviços preditivos e personalizados, com utilização de tecnologias emergentes, bem como na digitalização dos serviços públicos. A Estratégia de Governo Digital (2020-2022), publicada no Decreto nº 10.332 de abril deste ano, é prova disso, e tem como finalidade “oferecer políticas públicas e serviços de melhor qualidade, mais simples, acessíveis a qualquer hora e lugar e a um custo menor para o cidadão”.

O artigo 9º do mesmo Decreto determina a inclusão da implementação da LGPD no âmbito do Governo Federal como um dos objetivos a serem alcançados por meio da própria Estratégia de Governo Digital. “Mas a LGPD não impede o tratamento de dados pessoais e limita o uso de novas tecnologias?” Essa é uma pergunta que ouvimos com frequência, e a resposta é “não”. Na realidade, a lei traz, em seu artigo 2º, inciso V, “o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação” como um dos fundamentos da proteção de dados pessoais no Brasil. Ou seja, a LGPD não é um impedimento ao uso dos dados por meio da inovação e como parte do desenvolvimento econômico e tecnológico. Pelo contrário, sua missão é viabilizar que isso ocorra e de forma sustentável.

E o que significa “uso sustentável de dados pessoais”? Para responder a essa pergunta, devemos revisitar o conceito de “sustentabilidade”. De acordo com o Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa, sustentabilidade é a característica daquilo que consegue se sustentar ao longo do tempo, daquilo que é “capaz de se manter mais ou menos constante, ou estável, por longo período”. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário eletrônico da Língua Portuguesa. Curitiba: Positivo, 2004).

Estamos passando, portanto, por um período de mudança de cultura para uso sustentável de dados pessoais. E para ser sustentável, se mantendo “saudável” ao longo do tempo é preciso atender aos direitos humanos, dentre eles a privacidade. Isso faz parte de um movimento mundial que se fortaleceu recentemente com a entrada em vigor do GDPR (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, da União Europeia), em maio de 2018, e, no cenário nacional, agora com a entrada em vigor da LGPD.

Um uso não sustentável dos dados pessoais, por sua vez, é aquele que não respeita os direitos humanos e, mais especificamente, não garante os controles de privacidade e proteção dos dados. Sem esses controles implementados, crescem as chances de os dados serem utilizados para discriminação, manipulação e supressão de direitos e liberdades, vigilância, repressão, bem como para o cometimento de fraudes e outros crimes. O excesso de todos esses fatores e ausência das garantias mencionadas pode impedir que a sociedade se sustente a longo prazo.

O longo período de quarentena desmistificou muitos equívocos em relação ao uso da tecnologia e das informações pessoais. Mesmo as pessoas que antes relutavam em optar pelo digital, acabaram por der uma chance e verificar que diversas atividades digitais funcionam tão bem quanto, ou até melhor, do que as físicas ou presenciais. E ficou claro que diversas atividades que desempenhamos no dia a dia funcionam bem quando munidas de informações sobre as próprias pessoas envolvidas, pois, dessa forma, a experiência pode ser customizada e muito mais completa.

As operações com dados pessoais foram intensificadas durante o período, gerando maior valor à pessoa física. Esta, por sua vez, ganhou mais estímulo e confiança para compartilhar suas informações de forma segura em diversas plataformas. De forma indireta, portanto, o consumidor acaba impulsionando a inovação, o desenvolvimento econômico e tecnológico, fundamentos da proteção de dados no Brasil. Tudo isso em um ambiente que começa a se orientar para o uso sustentável dos dados pessoais.