Um dos itens mais procurados na Black Friday certamente foi o smartphone. E, para além da grande variedade de ofertas de preço, desfilou pelas páginas do e-commerce e vitrines das lojas físicas uma série quase infinita de formatos, cores, tipos de câmera e de tela e quantidade de memória, dando mostras de que o aparelho se tornou um dos ícones de consumo da sociedade contemporânea.

Mas seu status não se resume só a isso. Para começo de conversa, quem diria que o telefone celular, que despontou no Brasil nos anos 1990, avançaria tanto em sua proposta inicial de ser um meio de fazer chamadas de voz a partir de pontos móveis. Se compararmos os primeiros modelos com os atuais e seus múltiplos recursos, a diferença é brutal.

De qualquer forma, se estamos tratando de um instrumento de comunicação, nada mais lógico que ele tenha evoluído de maneira tão contundente. Afinal, o jeito das pessoas interagirem entre si e com o mundo também se alterou substancialmente nas últimas décadas, e as transformações pelas quais o celular vem passando são reflexo disso.

Basta lembrar que conversar por voz é apenas uma entre as tantas funções desempenhadas pelos smartphones em nossas vidas. O acesso à Internet, por exemplo, é outra delas: 99% dos usuários da rede no Brasil a utilizam pelo celular, sendo que 58% acessam a web exclusivamente por ele, segundo a pesquisa TIC Domicílios 2019, realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação e divulgada em 2020.

Naturalmente, dado esse volume de navegação pela web via smartphone, o equipamento também se tornou o principal meio de que se valem os brasileiros na hora de comprar pela Internet – 87% das compras do comércio eletrônico no País são feitas pelo aparelho, de acordo com a pesquisa “Consumo online no Brasil”, conduzida neste ano pela CNDL (Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas) e pelo SPC Brasil (Serviço de Proteção ao Crédito), em parceria com a Offer Wise Pesquisas.

 Retrato comportamental

 Não à toa as pessoas se preocupam tanto com a escolha do modelo de smartphone, uma vez que ele acaba sendo um grande companheiro delas no dia a dia. No Brasil, essa convivência é ainda mais acentuada. Um estudo da agência App Annie, realizado no segundo trimestre de 2021, aponta que a média diária de uso de aplicativos pelos brasileiros é de 5,4 horas, a maior do mundo.

Mais do que um parceiro do cotidiano, é possível dizer que o smartphone se tornou um espelho do dono. Afinal, o artefato reproduz muitas das características de quem o possui. Estão ali as imagens das pessoas que ama, dos lugares que visita, das situações que vivencia, bem como sua agenda de contatos, os aplicativos que utiliza para fins comerciais, profissionais e de lazer, suas predileções audiovisuais, referências ao time que torce, ao hobby que pratica, aos pets que adotou.

O celular retrata nosso comportamento. Talvez algum psicólogo já tenha cogitado desvendar os meandros mentais dos pacientes através da análise de seus smartphones. Ao menos os analistas da nossa personalidade no que diz respeito a lidar com as finanças já o fizeram. Abordagens modernas de avaliação de perfil de risco desenvolveram técnicas de composição de score de crédito a partir dos traços comportamentais de um indivíduo ao manusear o seu celular. Para tanto, estudiosos estabeleceram conexões entre os modos como interagimos com o smartphone e como lidamos com a quitação de nossos débitos.

Seria algo como “diga-me como teclas e te direis quem és”. Mas reforçando que essas análises são feitas de forma anonimizada, considerando que padrões de comportamento se reproduzem na sociedade e espelham características individuais, sem haver a necessidade de revelar a intimidade da pessoa em particular que está sendo analisada para chegar a determinadas respostas sobre ela.

O psicanalista tem o compromisso ético de guardar os segredos dos pacientes, mas isso não o impede de relatar características de seus casos para fins de estudo, por exemplo – desde que mantendo em sigilo as identidades dessas pessoas. Algo parecido se dá com a análise do comportamento financeiro de alguém a partir de seu smartphone: a finalidade é dizer para a instituição de crédito qual o risco de fazer um empréstimo para aquele perfil, não sendo necessário revelar seus dados pessoais para isso.

Os princípios da psicanálise surgiram há quase 140 anos, e muitos deles seguem atuais. O celular é bem mais novo, embora já se vão quase 40 anos desde que o primeiro modelo foi comercializado nos EUA. O que o criador do aparelho, Martin Cooper, certamente não previu é o quanto as evoluções de seu invento se prestariam para associações ligadas à psique humana.

Mas não é nada que seja tão complicado de entender: é só observar ao redor e constatar o tamanho da proximidade entre os humanos e seus celulares. O fato de estarmos tão refletidos neles é algo que até Freud explicaria se estivesse vivo – até porque certamente ele teria um smartphone nos dias de hoje.