De acordo com a clássica definição de Silvio Rodrigues – importante jurista brasileiro: “o patrimônio de um indivíduo é representado pelo acervo de seus bens, conversíveis em dinheiro”, o conceito de patrimônio, então, está diretamente ligado à noção de valor econômico que necessariamente é convertido em dinheiro e, portanto, é todo ativo e passivo de uma pessoa física e de uma pessoa jurídica.

Com o advento das novas tecnologias da informação e comunicação, que têm indiscutivelmente transformado nossa realidade e interferido nos aspectos culturais, políticos, sociais e econômicos, em uma frequência sem precedente, é momento mais que oportuno – necessário e urgente – refletir sobre a importância do patrimônio digital de uma corporação a partir de vários aspectos. Neste artigo, vamos nos apropriar do aspecto jurídico.

O mundo está cada vez mais digital e conectado. E, embora pouca gente reflita sobre o assunto, toda vez que usamos o computador e salvamos arquivos nele, utilizamos um smartphone e deixamos ali diversos registros, criamos uma conta para uso dos mais diversos serviços de Internet e deixamos registrado na nuvem uma série de dados ou, ainda, quando baixamos um aplicativo para usar suas facilidades, estamos construindo, de forma muito natural e impensada, nosso patrimônio digital.

Neste cenário, a clássica definição de patrimônio trazida no início deste artigo precisa ser ampliada. A partir de agora, os bens digitais são protagonistas quando o assunto é patrimônio. Podemos classificá-los como bens incorpóreos, que são inseridos na Internet e que possuem caráter pessoal e valor econômico. Com a nova realidade virtual, criaram-se três classificações: bens digitais patrimoniais, bens digitais existenciais e, por vezes, alguns bens poderão se apresentar com ambos os aspectos, sendo eles os bens patrimoniais e existenciais. Para entender melhor, seguem as devidas descrições:

1) Bens digitais patrimoniais: suscetíveis de transmissão, exceto se houver previsão em contrário – milhas aéreas/criptoativos/itens pagos em plataformas digitais, pontos de cartão de crédito, enfim, bens que podem ser valorados economicamente;

2) Bens digitais existenciais: natureza personalíssima. Esses bens não possuem valor patrimonial, mas sentimental, como perfis de redes sociais, caixas de e-mails, fotos e vídeos, mensagens de aplicativos, ou seja, bens personalíssimos e com valor sentimental/afetivo, não econômico;

3) Bens patrimoniais e existenciais: são aqueles bens que possuem tanto valor econômico, como valor sentimental/afetivo, tais como blogs e canais no YouTube.

O Patrimônio Digital Corporativo, portanto, é aquele composto por bens incorpóreos existentes nos meios digitais, com conteúdo econômico, e que podem ser armazenados em servidores físicos ou na nuvem. São os ativos digitais de uma empresa, incluindo todos os recursos que ela utiliza para realizar seus negócios – como moedas digitais, sites da pessoa jurídica com seus conteúdos protegidos por direito autoral, e-books, cursos on-line, softwares e aplicativos, bancos de dados e registros financeiros ou documentos empresariais contendo informações estratégicas, dentre outros. Incluem-se aqui, ainda, todos os ativos digitais utilizados para a comunicação com clientes, fornecedores e outros stakeholders, como redes sociais, sites, blogs, e-mails e outros canais digitais de comunicação.

É importante o seu resguardo com idêntica ou até maior cautela como a aplicada aos demais bens materiais que compõem o patrimônio material de uma corporação, a fim de permitir a sua livre disposição, seja entre sócios ou terceiros. Fundamental também é garantir segurança e proteção de dados – inclusive de clientes, parceiros, fornecedores e colaboradores.

Por isso, o Direito assume papel decisivo para a gestão e proteção do Patrimônio Digital Corporativo. A área torna-se estratégica já a partir do momento em que se adquire os bens digitais, com uma gestão de contratos muito bem delineada e detalhando o objeto contratado.
O exemplo dessa gestão bem feita são as licenças de softwares, sejam elas exclusivas, não exclusivas, perpétuas ou de prazo determinado, cujas responsabilidades das empresas cessionárias das licenças devem estar bem previstas, com SLA’s (prazos de respostas) pré-definidos e penalidades específicas na ausência de atendimento desses critérios.

Além disso, devem estar reguladas às condições relativas à propriedade intelectual dos bens negociados, dependendo do tipo de patrimônio digital que está sendo adquirido. E aqui menciono o exemplo dos softwares, mais uma vez, cujos contratos devem prever, expressamente, a cessão pelo desenvolvedor e o direito autoral à empresa adquirente do produto digital.

Já houve uma situação em que uma sociedade desfeita resultou na divisão do patrimônio digital, entre os sócios, de uma empresa do ramo de Educação. Contas de redes sociais, conteúdo de blogs e aulas em formato EAD (Educação a Distância), por exemplo, foram “levadas” pelo ex-sócio por meio da substituição de senhas e dificuldades de acesso pelo, agora então, único proprietário da corporação, causando prejuízo enorme para a atual gestão. O que fazer nesses casos? É difícil dizer, afinal, não havia termos e condições em contrato ou outro documento que garantisse a permanência deste patrimônio digital na pessoa jurídica.

Entre os sócios e acionistas, para diminuir esse tipo de situação, a questão pode eventualmente ser regulamentada em acordo de sócios ou quotistas para fixar critérios de valoração patrimonial em uma eventual retirada da sociedade ou outra operação societária.

É relevante, ainda, que o patrimônio digital seja destacado da pessoa física dos sócios e escriturado com assertividade na empresa. O objetivo é evitar a confusão patrimonial da pessoa jurídica (empresa) e da pessoa física (proprietário e sócio) para mitigar riscos de haver a desconsideração da personalidade jurídica. É fundamental que essa distinção esteja bem estabelecida em contrato e na escrituração da empresa.

No Brasil, já se discute, com assiduidade, a desconsideração da personalidade jurídica, ou seja, uma decisão judicial a partir da qual os direitos e, mais comumente, os deveres de uma empresa passam a se confundir com os direitos ou responsabilidades de seus sócios ou acionistas. Os casos mais discutidos correspondem às empresas que atuam em gestão de negócios e investimentos em criptomoedas. A jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo tem aplicado a incidência da teoria menor, com base no art. 28, parágrafo 5º, do CDC
(Código de Defesa do Consumidor):

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. § 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Está evidente o protagonismo – do que agora posso chamar – da Gestão Jurídica para o gerenciamento e a proteção do patrimônio digital de uma empresa. E essa gestão deve ser fundamentada em processo de qualidade para a revisão de contratos, em que o advogado pode avaliar os termos contratuais para garantir que haja cláusulas que protejam adequadamente o patrimônio digital corporativo; para a elaboração de políticas de privacidade e segurança, atuando para estabelecer diretrizes legais que garantam o cumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD); para o gerenciamento de riscos, quando a Gestão Jurídica colabora com a empresa no processo de avaliação e identificação de riscos de segurança cibernética, incluindo ameaças internas e externas. Por fim, auxilia também para a proteção de propriedade intelectual, ajudando a corporação a proteger suas patentes, marcas registradas e direitos autorais, garantindo que eles sejam registrados adequadamente e protegidos contra violações.

Embora em nosso País não exista legislação específica sobre o patrimônio digital, tanto para pessoas como para empresas, as regras que têm sido aplicadas são aquelas previstas no Código Civil (Lei 10.406/2002), bem como legislações esparsas, caso da Lei 9.279/1996, que regula os direitos e as obrigações relativos à propriedade intelectual (marcas e patentes) e a Lei 13.709/2018 –LGPD. Não é pauta deste artigo expor o conteúdo presente nestas leis, mas é importante citá-las para que sirvam de fonte de conhecimento e estudo acerca do tema.

É importante mencionar, também, que em 21 de dezembro de 2022 foi promulgada a Lei 14.478, que dispõe sobre a prestação de serviços de ativos virtuais e a regulamentação das prestadoras de serviços de ativos virtuais: os “criptoativos”. O intuito foi trazer mais segurança jurídica para essas operações, estabelecendo que as prestadoras de serviços deste segmento estejam sujeitas à prévia autorização de órgão ou entidade da Administração Pública Federal.

A lei define ativo virtual como a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamento ou com propósito de investimento. Exclui do enquadramento as moedas tradicionais (nacionais ou estrangeiras), os recursos em reais mantidos em meio eletrônico e os pontos e as recompensas de programas de fidelidade e valores mobiliários, além de ativos financeiros sob regulamentação existente.

Faz-se urgente ampliar as discussões acerca de uma Gestão de Patrimônio Digital Corporativo e, sem dúvida, ela deve passar pelo crivo da legislação e a partir da visão estratégica do Jurídico. Como bem explicado, quando se trata desta matéria, as corporações devem atentar-se a uma série de aspectos que podem impactar o seu negócio – positiva e negativamente. Ainda mais no Brasil, em que a legislação ainda caminha, sem definições, acerca do tema. Empresas responsáveis, são de fato responsáveis, quando olham para si e para todos aqueles que compõem sua cadeia de negócios a partir de uma visão protetiva, segura e transparente, e em uma sociedade pautada em tecnologias da informação e comunicação. O primeiro passo a ser dado nessa direção é a partir do respaldo jurídico dos bens digitais – que são plurais, múltiplos e ainda pouco reconhecidos.