Quem já experimentou uma peça de roupa um pouco folgada no tamanho, e, mesmo assim, arriscou sair pela rua sem cinto, provavelmente entenderá com mais facilidade sobre a importância de o conteúdo do produto digital ser considerado um forte aliado para a experiência do usuário.

E o conceito é mais simples do que se imagina: quando nos comunicamos somente por intermédio da fala, os propósitos comunicativos são alcançados de forma imediata. Mas se, ainda assim, algo der errado, ou seja, se não houver compreensão entre os interlocutores, basta recorrer aos recursos extralinguísticos, como gestos, entonação da voz, expressões do rosto… que a intenção, facilmente, será recuperada.

Já o texto escrito não tem a mesma possibilidade de desempenhar esta função. E tratando-se de um texto escrito para interface de um produto digital, a situação pode ser ainda um pouco mais delicada.

Veja bem: um texto escrito é como uma ponte que conecta dois importantes atores: de um lado, um escritor que tem a intenção de transmitir, em palavras, sua mensagem. Do outro, o leitor que precisará empregar um mínimo de esforço para compreender estas intenções do produtor. E é justamente aí que mora o perigo: depender da participação do leitor para compreensão da mensagem.

O texto escrito está muito longe de ser uma mera transposição do que se pretende falar

Tendo em vista que toda pessoa que escreve, fala; mas nem toda pessoa que fala, escreve, se pretende garantir boa experiência do produto digital, não ignorar a informação (conteúdo) é o primeiro passo. Afinal de contas, quando criança, aprendemos primeiro a falar e não, a escrever; concorda?

A língua falada sempre permanecerá em primeiro plano. E a escrita, como um mero produto da fala. Por isso a produção do conteúdo para o produto digital, independentemente de sua aplicação (chatbot, URA, aplicativos…), tem que ser pensada, cautelosamente, desde o início do projeto. E deveria ser assim, sempre. Mas, não é isso que acontece na prática. Muitas vezes, as pessoas não visualizam o conteúdo como parte integrante da experiência do usuário, o que acaba impactando na boa relação com o produto.

As habilidades em escrita para interface vão além das expertises de saber redigir um bom texto

A linguagem, verbal ou não verbal, sempre dependerá do contexto discursivo de seus interlocutores.

Segundo um estudo realizado pelo Ibope Inteligência, desenvolvido pela ONG Ação Educativa e Instituto Paulo Montenegro, no ano passado, o Brasil possuía cerca de 38 milhões de analfabetos funcionais; ou seja, um grupo que tem dificuldades de entender ou se expressar por letras ou números. Eles até conseguem decifrar, mas não quer dizer que entenderam o que leram.

O desenvolvimento do conteúdo para o produto digital requer, antes de qualquer planejamento, muita pesquisa e testes de verificação. Lembre-se que nem toda pessoa que fala possui relação com a leitura e/ou escrita, mas nem por isso deixará de ser um consumidor em potencial.

Pensando nesta lógica, um cuidado ainda maior deverá ser tomado, quanto à escolha do profissional que terá a missão de produzir o discurso e o diálogo da marca. Isso porque, o fato de escrever bem, ou escrever textos longos não significa que esta mesma pessoa domina a arte de escrever para os produtos digitais. Isso porque, basicamente há dois modelos de textos que predominam no cotidiano: o modelo de texto tradicional e o modelo de texto conversacional:

  • o modelo de texto tradicional é um modelo de escrita longa, e a atividade de leitura é passiva.
  • já o modelo conversacional é uma escrita que tem a intenção de produzir um diálogo. E como toda boa conversa, espera-se que o usuário capte a informação e interaja. Ou seja, a leitura é ativa.

Em resumo, escrever textos longos é esperar com que as pessoas continuem lendo. Já os textos curtos – a escrita UX – é um desvio de caminho. É uma curva fora da rota.

Muitas vezes, o profissional responsável pelo desenvolvimento de conteúdo terá muita coisa para comunicar, e desejará comunicar. Porém quanto maior for a quantidade de informação, maior é o risco de o usuário não entender. Neste caso, ser breve, porém assertivo, vale muito mais do que 1.000 palavras.

Boas práticas de textos são essenciais. Mas representar um produto, através de um texto, exige a combinação de três habilidades indispensáveis:

Domínio Impecável da Norma Culta da Língua Portuguesa +

Princípio da Brevidade + Saber vender

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= Conteúdo que Melhora a Experiência do Usuário

E vou explicar, separadamente, o porquê essas três habilidades são essenciais para um projeto:

  1. Domínio Impecável da Norma Culta da Língua Portuguesa

Dizem que a Língua Portuguesa é uma das mais difíceis. E como especialista, devo concordar! São muitas peculiaridades. Tratando-se de escolha das palavras então… se não tiver cuidados na hora de selecionar um verbo, um conector, é fácil comprometer o entendimento de um trecho, de uma frase, de um texto…, no entanto isso é mais rotineiro do se imagina.

Vou te contar uma experiência desagradável que aconteceu outro dia com uma pessoa próxima a mim, mas, graças a Deus, foi apenas um mal-entendido.

Um amigo solicitou um carro por aplicativo para um terceiro (através de seu smartphone). Ocorre que durante algumas horas (e longas por sinal…), o usuário, o motorista do aplicativo e o terceiro perderam a comunicação. E ele não sabia se a pessoa para quem ele havia solicitado o carro, havia chegado bem no local de destino.

Aquelas horas de ausência de resposta levou o solicitante a pedir suporte da empresa responsável pelo aplicativo. E ao clicar no Centro de Ajuda, no tópico Segurança, tinha um subtópico que dava orientação para este tipo de caso. O título do subtópico estava grafado da seguinte forma:

Reportar desaparecimento”

Por se tratar de uma pessoa letrada, o meu amigo não teve dificuldades para encontrar orientações na página de Ajuda do aplicativo.

Mas há de se convir que o significado do verbo Reportar parece muito óbvio para quem é letrado. Contudo para um semiletrado ou, até mesmo, um iletrado, será que este verbo faz sentido? A escolha do verbo até foi correta, mas será que foi a mais adequada, tendo em vista que o produto atende as mais variadas classes sociais?

Bem, como sugestão de reescrita, ao meu ver, o subtópico seria muito melhor ao entendimento de todos, talvez, se estivesse da seguinte forma:

“Comunicar desaparecimento”

ou

“Informar desaparecimento”

Percebam que, na hora do desespero, uma pessoa que não possui habilidades com a leitura pode se sentir totalmente desamparada por simplesmente não compreender a relação semântica de um determinado verbo. E, por conseguinte, ter uma experiência desagradável com o produto, por melhor que o layout seja.

Não se trata aqui de entender regras básicas de concordância verbal, sujeito ou predicado. Trata-se de saber aplicar, no momento certo, habilidades semânticas, linguísticas, morfológicas, entre outras. Daí a necessidade de um profissional que entenda “das letras” como ninguém.

  1. Princípio da Brevidade

O Princípio da Brevidade é um dos pilares fundamentais para um texto de um produto, senão um dos mais importantes.

Sabe aquela regrinha básica de que menos é mais? Pois bem, em uma escrita para interface, este dogma cai como uma luva. Isso porque, quanto mais informações você tentar passar, maiores são as possibilidades de confundir a cabeça do usuário. Em resumo, é como se você fosse dar uma informação a um desconhecido na rua.

John Saito, UX Writer Dropbox que já passou por grandes produtos, como YouTube, Google e Konami também defende esta ideia. Para ele, “ser breve é melhor do que ser assertivo”. Se der para resumir de três palavras para uma palavra: resuma. Este princípio faz toda diferença ao trabalhar texto da interface do usuário.

  1. Saber vender

Dominou a norma culta e soube aplicá-la em poucas palavras? Agora vem a “cereja do bolo”: vender. Textos limpos, impecáveis e objetivos também precisam ser influenciadores, persuasivos. Eles precisam atrair, manter, converter e fidelizar o usuário.

Dificilmente as pessoas deixarão de utilizar os serviços Google, por exemplo, por causa da sua experiência. A mesma coisa acontece com o Waze. A boa experiência desses produtos é completa: do layout a informação.

Um outro bom exemplo que gosto de citar são as notificações do Ifood.

Às vezes, o usuário não está nem pensando em pedir nada. Mas aquelas notificações, quando chegam, de repente… além de ter um apelo emocional indiscutível, tem muito impacto de convencimento para levar ao usuário à tela de compra que, neste caso, é a liberação do Cupom de Desconto. Estratégias de conteúdo, aliadas a uma boa dose de bom humor se misturam ao gatilho mental do benefício: “oba! Ganhei desconto!”

Portanto antes de avaliar as habilidades de escrita do profissional, avalie também as habilidades de empreendedorismo que esta pessoa carrega. Isso fará diferença lá na frente.

Conteúdo bom é o que defende os interesses dos dois lados: produto e usuário

Se quer garantir, portanto, uma ótima experiência do usuário, não o deixe pegar a estrada sozinho (no momento de descoberta da marca), tampouco ir pela estrada à fora sozinho (jornada).

Lembre-se: escrever para a web é escrever para todos. É discursar para um aglomerado. Agora, escrever para um produto digital é escrever para o usuário. É dialogar um a um.

Vale ressaltar que apesar de o sistema da língua ser o mesmo (texto oral e texto escrito), há uma diferença muito grande no que se refere à estrutura. Segundo Marcuschi, um dos maiores linguistas brasileiros da atualidade, a fala possui moldes que por vezes não são apresentadas na escrita, assim como há também recursos utilizados na escrita que não se apresentam na fala. Por isso, para cada situação, é preciso uma análise dos gêneros orais e escritos em circulação no meio social, já que uns podem ser bem semelhantes, e outros, diferentes.

Na dúvida, se for para se manifestar que seja para alguém e não, para alguma coisa.