Desde o século 15, quando Guttemberg inventou a prensa, convivemos com a necessidade de regular a propriedade imaterial, ou seja, já temos – ou deveríamos ter – alguma experiência nisto. Mas os direitos autorais e imateriais são dinâmicos e sujeitos às mudanças tecnológicas que nos são impostas, e o surgimento da internet acelera isto. Ainda que no Brasil a Lei de Direitos Autorais (LDA) seja de 1998, aprovada 3 anos após o surgimento da internet comercial no país, sua redação possui limites que o tempo nos impõe com cada vez mais força, pressionando a indústria criativa, legisladores, criadores de conteúdo e youtubers (adoro quando uma marca se dilui em uma categoria) a evoluírem. A LDA traz algum equilíbrio para a dinâmica entre empresas distribuidoras, criadores e suas propriedades, tendo forte inspiração nas leis europeias de direitos autorais, mais protetivas do que as fontes norte-americanas, o que não deixou de ser uma benesse para o país onde a criatividade é um forte incentivador para fora da pobreza, como vemos tão comumente nos artistas populares. É tão comum que se faz piada com isto (é cosplay de pobre que chama?)

Este ambiente, fortemente alavancado com as redes digitais que nos envolvem, chega agora a seu limite com o surgimento das inteligências artificiais generativas, ou IAs generativas, para os íntimos. Sua popularização desde o lançamento do DallE-2ChatGPT-3, Midjourney e outros tantos nos surpreende e assusta, como um bom mágico faria. Mas por trás de todo o espanto temos diversas perguntas que escancaram a necessidade de uma reforma da LDA, já atrasada, mas agora mais do que nunca, urgente.

Nas últimas semanas, com as tentativas de parte da indústria criativa em inserir uma seção tratando da remuneração de obras audiovisuais no PL 2630 (o PL de fake news – novamente – para os íntimos) deixou claro o quanto o tema é premente. Não há qualquer relação direta entre os temas do projeto de lei e questões que deveriam ter sido tratadas com intensidade e profundidade na reforma da LDA e que tentaram caminhar na urgência da discussão do projeto de lei. Deu no que deu e o PL 2630 foi retirado de pauta por sua rejeição a partes do texto pelo Congresso. Entre os temas repudiados, a alteração da LDA através de uma lei que não trata e nem deveria tratar de direitos autorais. 

Ainda assim, maior espanto que robôs que escrevem, desenham, pintam e sabe-se lá mais o que, vem do fato de que não se trata ainda das perguntas sem resposta fácil nas questões de direito autoral e imaterial, especialmente aquelas trazidas pelos algoritmos nossos do dia-a-dia. Vamos a elas:

#1. Uso indiscriminado e gratuito. Até o advento das IAs generativas era comum se permitir que algoritmos e robôs copiassem conteúdos para fins de cópia, backup, comentário e treinamento. Com o surgimento do ChatGPT ficou claro que o aprendizado de máquina se acelerou de tal forma que é possível criar produtores de conteúdo que se utilizam de bases de dados massivas, obtidas gratuitamente. No caso das IAs generativas de imagens já há discussões e disputas em curso sobre a necessidade de que se remunerem os titulares dos conteúdos coletados e armazenados nestas bases. Copiar todo o catálogo da Getty Images pra treinar seu robô e depois usar isso pra vender ele é um ilícito? Temos que pedir permissão para que as IAs generativas utilizem estes conteúdos como base para suas criações? 

A legislação atual não é clara sobre este ponto e pela redação atual as obras derivadas, criadas pela AI generativa, não teriam que remunerar os criadores do conteúdo original, a depender da falta de similaridade entre as obras. Uma alternativa que está sendo pensada e buscada pelos titulares de grandes bases de dados é justamente a venda de licenças para o treinamento de inteligências artificiais.

E uma nota para o futuro: quem criar bases de dados artificiais para treinamento de máquinas, com rostos, desenhos, objetos e imagens que não existem, criados apenas para treinar os robôs, tem um futuro pela frente. Mais uma profissão e um modelo de negócio nos surge. 

#2. É fair use ou abuso? Na mesma falta de definição sobre o uso de conteúdos para treinamento de algoritmos, a legislação brasileira não detalha o que seria o uso justo (fair use, para – eu sei – os íntimos) e seus limites, deixando que a cadeia da indústria criativa defina quais os limites para o uso justo. Em um mundo com IAs generativas não seria mais possível conviver com a possibilidade de uso justo considerando patamares iguais para usos distintos. Os usos por máquinas, humanos, para treinamento, com fins comerciais ou não teriam que ser mais bem estabelecidos. Uma lei atualizada traria muito mais segurança se adentrasse este aspecto.

#3. Pagamos pra quem? A remuneração de direitos conexos e para a cadeia de criadores estabelecidos em uma determinada obra autoral já é complexa na indústria musical, mas a LDA não considerou o mesmo modelo para obras audiovisuais. Em um mundo de vídeos, mesa castspodcastsreelsyoutubers e outras espécies da fauna criativa, se discute a necessidade de remuneração dos participantes de obras audiovisuais. Mas sequer se discutiu como identificar corretamente os criadores de conteúdos. Em um mundo em que a geração de conteúdos em massa e que rapidamente fica cada vez mais simplificada com o uso das IAs generativas, a quem pagamos? 

Do mesmo modo, em conteúdos escritos, quem seriam os jornalistas a serem remunerados? Como definir e remunerar veículos jornalísticos, o que seria isto e como a remuneração ocorreria, em um mundo em que se estimulam conteúdos radicais que nos trazem maior engajamento? 

Atualmente a indústria musical nos traz algumas pistas, já estando habituada a remunerar os artistas por percentuais daquilo que se escuta entre toda a base de ouvintes, o que poderia ser replicado no ambiente de consumo de notícias e de obras audiovisuais. Mas este modelo é o melhor que podemos utilizar? Afinal, até hoje, passados 30 anos do surgimento do Napster, ainda não há consenso sobre a legitimidade destes modelos de remuneração dos artistas, com diversos testes e modelos de negócios sendo tentados ao longo dos anos. Definir regras mínimas em lei seria uma forma de garantir um mínimo de remuneração aos criadores de conteúdo, permitindo-lhes explorar diversos modelos até que descubram o que funciona melhor para cada tipo de conteúdo e público, sem que se permita o uso abusivo dos conteúdos sendo monetizamos.

#4. Quem pode criar? Calma, ainda não acabou. Também teremos que enfrentar a questão da titularidade dos conteúdos. Afinal, quando uma IA generativa cria algo, a quem pertence este conteúdo? Ao criador do prompt que o levou a criar aquilo e direcionou e editou as criações do robô, aos donos das plataformas dos robôs, aos empregadores dos funcionários que pagam pelo uso dos robôs, a todos eles ou a nenhum deles? E quem responde em caso de uso indevido e criação de conteúdos indevidos? Atualmente as leis de direito autoral e imaterial sequer permitem que IAs generativas possam ser consideradas titulares de direitos, já que o direito autoral só reconhece as criações do espírito humano, este ser que nos habita entre os ossos e o etéreo e levanta nossa carne todo santo dia. Como robôs não sofrem deste mal, também não podem usufruir de seus direitos. Mas até quando conseguiremos manter esta limitação? 

Nos EUA, na recentíssima greve dos roteiristas de Hollywood, já há demanda de que as IAs generativas não possam ser utilizadas para criar os primeiros rascunhos de roteiros, relegando os pobres humanos à condição de revisores de texto robótico, sendo mal remuneramos por isso. Em outras palavras, o espírito humano precisa ser protegido, na visão dos roteiristas. Não será a última vez que encararemos este tipo de demanda, que daqui pra frente será cada vez mais habitual. 

É hora de repensarmos como iremos redefinir e criar as bases legais para suportar nosso espírito humano neste século de máquinas. Nosso tempo é finito. O dos robôs, nem tanto.