Regular economicamente as plataformas digitais passa pela implementação de mecanismos de interoperabilidade e portabilidade como soluções para assegurar a concorrência e a liberdade de escolha do consumidor. Pensar no setor de telecomunicações, onde a comunicação entre diferentes operadoras é transparente, ajuda a ilustrar um cenário ideal para os serviços digitais, atualmente dominados por “jardins murados” de grandes empresas de tecnologia estrangeiras, que consolidam monopólios e concentram dados pessoais e empresariais nas mãos de poucas empresas. O PL 4.675/25, apresentado pelo Governo Federal, traz uma oportunidade de ser aperfeiçoado para que essa situação seja encarada de forma abrangente.

Você pega seu telefone celular para fazer uma ligação para um amigo. Ele atende sem nenhuma barreira independentemente da operadora que vocês contrataram. Este mecanismo, chamado de interoperabilidade entre as empresas, existe desde o século passado e torna possível a existência de concorrência de fato no mercado de telecomunicações. O mesmo vale para mensagens como o SMS. Se você decide mudar de empresa por qualquer motivo, leva seu número e informações que continuam viabilizando sua comunicação com o mesmo amigo. Este recurso é mais conhecido dos brasileiros e se chama portabilidade.

Nos últimos dez anos, porém, por um erro estratégico dos países e pelo modelo de negócios das próprias empresas de telecom, as ligações e a troca de mensagens, sejam textuais ou multimídia, foram migrando das redes de telefonia para ambientes fechados que são os aplicativos de redes sociais e os serviços de mensagens instantâneas, passando a ser praticamente a única forma de comunicação. Tudo muito cômodo e conveniente para a maioria das pessoas, mas uma tendência que aprisionou os usuários dos serviços digitais e colocou dados e informações pessoais e empresariais relevantes na mão de um monopólio de empresas nos dois segmentos. É o que os economistas chamam de vendor lock-in.

Agora, imagine se você pudesse exercer seu direito de usar qualquer aplicativo ou rede social e ele se integrasse naturalmente a uma camada de soluções comuns, com padrões e protocolos compartilhados, que permitisse que as comunicações continuassem fluindo de maneira imperceptível como ocorre com a telefonia. Imagine se você pudesse fazer um post sobre qualquer assunto e pudesse escolher que ele fosse publicado em qualquer rede social sem custo?

Este artigo se propõe a provocar a reflexão sobre o tema no Brasil por meio de cinco perspectivas: as barreiras técnicas, a legislação europeia, o debate no Congresso brasileiro, o modelo de monetização e os efeitos sobre a democracia e a economia.

Obstáculos ao fim do monopólio

Apesar da analogia com a telefonia ser didática, a realidade técnica dos mercados digitais é mais complexa, o que é frequentemente usado como justificativa pelas grandes empresas para evitar a abertura e compartilhamento de seus sistemas. As barreiras técnicas não são intransponíveis, mas são reais e funcionam como um argumento estratégico contra a livre concorrência. Poderíamos resumi-las a três fatores:

1. Complexidade e diversidade de dados

  • Dados estruturados e não estruturados: É relativamente mais fácil padronizar a portabilidade de dados estruturados (como nome, email, ou uma lista de contatos). É muito mais complexo garantir a portabilidade e interoperabilidade de dados não estruturados ou complexos, como:
    • Histórico de mensagens: Manter a integridade e o contexto (quem disse o quê, a que horas, em que grupo) ao transferir para um sistema diferente.
    • Conteúdo multimídia: Padronizar formatos de vídeo, áudio, ou stickers proprietários.
    • Metadados: Informações sobre o engajamento, visualizações, likes, e outros sinais que são o diferencial algorítmico de cada plataforma.
  • Identidade Social: Recriar a rede de conexões de um usuário, especialmente em um ambiente de comunicação em tempo real e de grupos, de forma segura e com a permissão de todos os envolvidos, é um desafio técnico e legal complexo.

2. Protocolos proprietários e interfaces (APIs)

  • Comunicação em tempo real: Serviços de mensageria usam protocolos de comunicação próprios (ou adaptados) para garantir velocidade, eficiência e segurança, otimizados para suas infraestruturas. Exigir que esses serviços se comuniquem perfeitamente com protocolos de terceiros é tecnicamente difícil, pois exigiria que as empresas abrissem o acesso à lógica central de suas redes.
  • Falta de Padrões Abertos: As empresas dominantes não têm incentivo comercial para adotar padrões abertos e bem documentados (APIs) que facilitem a integração por concorrentes. Pelo contrário, manter interfaces fechadas é uma estratégia de negócios. O desafio regulatório é impor um padrão comum para que essa comunicação seja possível.

3. Segurança e privacidade (criptografia)

  • Criptografia de ponta a ponta (E2EE): Muitos serviços de mensageria (como o WhatsApp) utilizam criptografia E2EE para proteger as comunicações. A criação de regras de interoperabilidade levanta questões sobre como um serviço externo pode se comunicar de forma segura e verificável (autenticação) sem comprometer a integridade e o sigilo da comunicação original criptografada de ponta a ponta.
  • Governança de dados: O compartilhamento de dados (portabilidade) precisa ser feito com estrita observância às leis de proteção de dados (como a LGPD no Brasil ou o GDPR na União Europeia), que exigem consentimento, segurança e rastreabilidade, adicionando uma camada de complexidade técnica ao processo de transferência entre agentes.

No caso da interoperabilidade, o grau de dificuldade para implementação de remédios para algumas destas falhas de mercado pode ser resumido em quatro elementos:

Nível de Interoperabilidade

Descrição

Dificuldade

Técnica

Conexão entre sistemas (formatos de arquivo, APIs).

Relativamente Baixa

Sintática

Capacidade de trocar o formato da informação (ex: JSON, XML).

Média

Semântica

Capacidade de entender o significado dos dados trocados (ex: um “amigo” no Facebook é o mesmo que um “seguidor” no Instagram, ou um “contato” no WhatsApp).

Alta

Organizacional/Social

Garantir que o serviço funcione de forma útil e colaborativa entre plataformas, incluindo regras de moderação, spam, e gerenciamento de perfis.

Muito Alta

Elaboração do autor

Analisando a tabela, se torna mais claro que alguns destes obstáculos necessitariam ser superados com uma ação multilateral para rever a governança digital rumo a este tipo de arbitragem. A intervenção dos países seria no sentido de tornar mais efetivo o controle de agências do sistema internacional sobre as entidades privadas que governam efetivamente a internet e se encontram capturadas pelas grandes empresas. Mecanismos multilaterais para definir os padrões e protocolos técnicos abertos que as plataformas seriam obrigadas a adotar reduziriam os riscos inerentes ao domínio da tarefa por fóruns privados (como o W3C e o IETF) sem o acompanhamento de um corpo regulatório multilateral neutro.

Historicamente, este é um dos temas que mais gera silêncios e vetos nos debates da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a agenda digital dada a sensibillidade e o nível de disrupção de qualquer medida global que atinja o status quo conquistados pelas big techs nas últimas três décadas. Até hoje, apesar de tentativas esparsas, a União Internacional de Telecomunicações (UIT) não conseguiu tratar este tema de forma efetiva por uma série de barreiras interpostas por empresas e países que possuem vantagens com este arranjo, privilegiando a monopolização.

Uma resposta regulatória

Diante do fracasso das leis de concorrência tradicionais em resolver o lock-in digital, a União Europeia instituiu o Digital Markets Act (DMA), que adota uma abordagem ex ante, impondo regras preventivas aos gatekeepers (controladores de acesso) que detêm poder de mercado. Vigente nos países do bloco desde março de 2024, o regulamento prevê diretamente mecanismos de interoperabilidade e portabilidade por parte das plataformas digitais, transformando-as em obrigações legais:

  • Interoperabilidade de mensageria: O DMA exige que os gatekeepers de serviços de mensagens (como WhatsApp e iMessage) abram seus sistemas para que usuários de plataformas menores possam se comunicar com eles, garantindo que o usuário não precise de uma conta na plataforma dominante apenas para conversar com seus amigos.
  • Portabilidade efetiva: Impõe a obrigação de permitir que os usuários migrem seus dados (incluindo dados gerados pelo uso) de forma efetiva, gratuita e em tempo real para terceiros.

O DMA reconhece as barreiras técnicas, mas exige que as empresas invistam em soluções de engenharia para superá-las, sob pena de multas que podem chegar a 10% do faturamento global. A lacuna deixada pela lei europeia é a previsão da interoperabilidade como regras também para as redes sociais, o que atingiria diretamente o modelo de negócios destes conglomerados por conta da publicidade.

A iniciativa brasileira

O Brasil iniciou o debate sobre regulação econômica a partir de setembro quando o governo federal encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) 4.675/2025, que busca seguir uma trajetória semelhante ao DMA, propondo a criação de uma regulação econômica em mercados digitais no âmbito da Lei de Defesa da Concorrência (Lei n.º 12.529/2011).

O PL mira os “Agentes Econômicos de Relevância Sistêmica” e impõe a eles Obrigações Especiais, que incluem:

  • Obrigação de portabilidade de dados: Semelhante ao DMA, o PL exige que o agente sistêmico possibilite a portabilidade de dados do usuário (incluindo dados agregados e de desempenho) para terceiros de forma efetiva e em tempo real. Esta é a ferramenta mais direta do PL para reduzir o lock-in nas redes sociais e mensageria, permitindo que o usuário possa sair de uma plataforma sem perder sua identidade social.
  • Poder regulatório: O PL confere ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) a competência para não apenas designar os agentes, mas também para impor obrigações adicionais e específicas de acesso e interoperabilidade, se entender que a falta delas é uma prática anticompetitiva.

Embora o PL 4.675/2025 não detalhe a interoperabilidade de mensageria com a mesma precisão que o DMA europeu, ele cria o marco legal e confere o poder regulatório ao CADE para exigir que as plataformas dominantes compartilhem seus sistemas e bases de dados, além de garantir a portabilidade, pavimentando o caminho para um mercado digital mais aberto no Brasil. Além disso, sua tramitação no Congresso permite que emendas possam vir a aperfeiçoá-lo. No caso, comparativamente ao DMA, existem alguns vácuos a serem preenchidos no texto, principalmente no caso da interoperabilidade:

Aspecto

DMA (União Europeia)

PL 4.675/2025 (Brasil)

Obrigação Específica de Mensageria

SIM. O DMA lista explicitamente a obrigação de os Gatekeepers abrirem seus sistemas de mensagens (e chamadas) para provedores terceiros de pequeno porte (em fases). Mas não o faz em relação a redes sociais.

NÃO. O PL não tem uma obrigação explícita e detalhada para a interoperabilidade de mensageria ou redes sociais.

Foco da Interoperabilidade

Foco primário na competição e interação direta entre plataformas.

Foco primário no acesso a dados e na não discriminação em relação a terceiros.

Mecanismo de Aplicação

As obrigações são aplicadas automaticamente aos Gatekeepers designados (ex-ante genérico).

As obrigações gerais (como portabilidade) são automáticas, mas as obrigações mais específicas (interoperabilidade complexa) podem exigir determinação e detalhamento pelo CADE caso a caso (ex-ante específico).

Elaboração do autor

Uma falha importante a ser corrigida é a falta de previsão da interoperabilidade no caso das redes sociais. O lock-in em redes sociais é impulsionado pelo diferencial algorítmico e pelos metadados de engajamento. Se o PL brasileiro conseguisse ir além do DMA e estabelecer princípios para a interoperabilidade de conteúdo, posts e feeds, isso seria um argumento de destaque sobre o potencial do Brasil inovar na regulação.

Impactos políticos e econômicos

Indo além do fator concorrencial e da liberdade de escolha, a ausência de interoperabilidade e portabilidade nos serviços digitais não gera apenas ineficiência econômica ou frustração do usuário. Existe um efeito direto também sobre a democracia e a soberania econômica, especialmente em países que não possuem plataformas digitais próprias.

lock-in digital confere a um punhado de empresas estrangeiras um poder desproporcional sobre o discurso público, a organização social, o acesso à informação e até a oportunidades de geração de renda. Em países como o Brasil, onde a penetração de plataformas digitais dos Estados Unidos e da China é alta, a falta de interoperabilidade significa que os dados e as regras de moderação (ou sua ausência) de conteúdo são determinados por códigos de conduta e algoritmos opacos, alheios à legislação e à cultura local. Como vimos em casos judiciais recentes, isso limita a capacidade do Estado e da sociedade civil de garantir o pluralismo informacional e combater a desinformação de forma soberana. A dependência dessas infraestruturas fechadas torna a democracia vulnerável à manipulação algorítmica e à censura transnacional, transformando gatekeepers privados em árbitros da esfera pública. Do ponto-de-vista financeiro, pessoas e pequenas empresas podem se ver sem receita ou meios de pagamento de uma hora para outra, gerando convulsões sociais como no recente caso do Nepal.

Para países que buscam desenvolver seu próprio ecossistema de tecnologia, como o Brasil e muitas nações em desenvolvimento, a falta de interoperabilidade e portabilidade é uma barreira intransponível à entrada. As grandes plataformas digitais retêm o ativo mais valioso: os efeitos de rede proporcionados por seus bilhões de usuários e os dados que geram gratuitamente para estas empresas. Sem a obrigação de portar ou interconectar essas redes, novas startups locais, mesmo que ofereçam um produto superior, não conseguem competir contra o lock-in das gigantes, pois não têm como transferir a rede social do usuário. Isso sufoca a inovação doméstica, perpetua a dependência de tecnologia estrangeira e permite que a maior parte da cadeia de valor digital (dados, publicidade e capital) seja extraída para fora desses países, impedindo o desenvolvimento de mercados digitais nacionais robustos.

Novo modelo de negócios

Fazer isso também significa mexer em um vespeiro que é o modelo de monetização das plataformas. Erigido no tripé publicidade-dados-serviços, ele teria que ser bastante alterado no caso da vigência de portabilidade e interoperabilidade plenas. Esta é uma seara que ainda precisa ser mais debatida de forma não dogmática. Por isso, vale esboçar algumas possibilidades. A implementação dos dois mecanismos como regra teria um impacto transformador e disruptivo no modelo de monetização central das grandes plataformas digitais, especialmente aquelas baseadas em publicidade e dados. O modelo atual, focado no lock-in e na retenção máxima de usuários e dados, seria forçado a evoluir, migrando do foco na captura para o foco no valor e qualidade do serviço.

A principal fonte de receita dos gatekeepers é a publicidade direcionada, que depende diretamente da exclusividade dos dados pessoais e da audiência. Com o fim do lockin e das redes fechadas, teríamos pelo menos quatro externalidades positivas para o consumidor e as empresas sem poder de mercado.

  • Fim da exclusividade no acesso a dados: A portabilidade de dados exige que os usuários possam transferir sua rede de conexões, histórico e engajamento para concorrentes. Isso dilui o valor do diferencial algorítmico, pois o conhecimento detalhado do usuário (metadados) deixaria de ser uma posse exclusiva da plataforma.
  • Redução do poder de monopólio sobre a audiência: A interoperabilidade, especialmente se aplicada a redes sociais (o que não é obrigatório no DMA, mas é um vácuo regulatório), permitiria que um usuário interagisse com sua rede em diversas plataformas. Isso acabaria com a garantia de que um anunciante só alcança um público específico se pagar à plataforma dominante.
  • Queda nos Preços de Publicidade: A facilidade de portabilidade e a concorrência na audiência reduziriam o prêmio de monopólio que as plataformas cobram atualmente. Os anunciantes ganhariam poder de negociação e migrariam para onde o custo por aquisição fosse menor, forçando a queda dos preços da publicidade.
  • Dificuldade de combinação de dados para publicidade direcionada: o modelo de monetização das Big Techs frequentemente se baseia na combinação de dados pessoais de diferentes serviços (mensageria, rede social, busca) para criar perfis publicitários mais atraentes. A regulamentação do DMA e do PL 4.675/2025, ao focar na portabilidade e na governança de dados, exigiria um consentimento explícito e granular para essa combinação, o que, na prática, restringiria a capacidade das plataformas de fornecer publicidade hiperdirecionada.

O que parece ser algo impensável, caminharia para alternativas que refariam o modelo de negócios das plataformas para algo mais civilizado do ponto de vista do equilíbrio e da contestabilidade econômica. Com a redução da eficácia do arranjo baseado em publicidade e lock-in, as plataformas seriam incentivadas a migrar para modelos de receita que priorizam a qualidade, o serviço e a inovação. Entre eles, poderiam estar:

  • Foco em serviços de assinatura (subscription): monetização migraria para a cobrança de serviços premium que não são fáceis de replicar ou portar, incentivando o usuário a pagar pelo valor intrínseco.
  • Receita de Serviço e Ferramentas (modelo B2B): as plataformas seriam forçadas a agir mais como infraestruturas neutras para o comércio e serviços de terceiros (o que o DMA e o PL 4.675/2025 buscam ao proibir o favorecimento próprio).
  • Inovação para manter o usuário: o foco mudaria de “prender o usuário” para “inovar para reter o usuário”. A retenção dependeria da melhor experiência de usuário, da interface superior, da melhor performance técnica ou do desenvolvimento de novos recursos exclusivos, e não mais da inércia causada pelo lock-in.

Em suma, a interoperabilidade e a portabilidade funcionariam como uma “vacina” contra o monopólio, forçando as plataformas a competir em um terreno de igualdade e a desenvolver modelos de receita que se baseiem no consentimento, na qualidade do serviço e na concorrência leal, e não na exclusividade de dados ou na infraestrutura fechada.

Risco colateral

O legislador também terá que ficar atento sobre outro modelo de negócios que poderá ajudar a barrar a inovação concorrencial que é conhecido como zero rating, ou a forma como as operadoras de telecomunicações garantem acesso a determinados aplicativos sem custo adicional ao assinante. Foi este arranjo comercial entre serviços de telecom e digitais, criado há mais de 10 anos, que ajudou a provocar o atual aprisionamento dos usuários em uma determinada plataforma de mensageria ou rede social.

Se o PL 4.675/2025 for aprovado como está, a existência contínua do modelo das operadoras poderá sabotar a eficácia das regras determinadas pelo CADE. Por exemplo: mesmo que a autarquia obrigue um agente de relevância sistêmica a abrir seus dados para portabilidade, ou a interoperar com um concorrente, o usuário ainda terá um incentivo financeiro poderoso para permanecer na plataforma subsidiada, pois migrar para um concorrente (que consumirá seu pacote de dados) representará um custo real, prejudicando os usuários de menor renda.

Sem uma fiscalização rigorosa ou até o banimento do zero rating, alguns efeitos da regulamentação dos mercados digitais pode ser neutralizada pela política tarifária dos serviços de telecomunicações. Este subsídio regulatório e financeiro ao lock-in das Big Techs torna o esforço para impor interoperabilidade e portabilidade (complicado pelas barreiras técnicas) ainda mais complexo.

Propostas para debate

Diante de tudo que colocamos aqui, vale colocar na mesa algumas ideias sobre como aperfeiçoar um projeto essencial para a regulação de mercados digitais no Brasil. São medidas concretas para o texto do PL 4.675 a fim de garantir que o Brasil não apenas siga, mas lidere a agenda global de concorrência digital. Indo além de um texto principiológico e pouco normativo, as propostas consolidam o desejo de que o país tenha real soberania digital e que os usuários recuperem o controle de seus dados e conexões, reduzindo o domínio dos agentes de relevância sistêmica a fim de garantir liberdade de escolha e de iniciativa.

Em um exercício inicial, aberto ao debate, seria possível propor emendas no seguinte sentido:

1. Interoperabilidade plena e portabilidade expandida: o fim do muro social

O ponto central ausente da proposta do governo são dois mecanismos que possibilitam estancar o crescimento dos chamados “jardins murados” digitais, obrigando as big techs estrangeiras a abrirem seus sistemas para que usuários possam se comunicar com quem quiserem, independentemente do aplicativo que utilizam. Isso será feito por meio de APIs abertas e padronizadas, com um prazo de 24 meses para implementação, garantindo que o usuário de uma rede social possa publicar em uma plataforma concorrente (cross-posting) e leve consigo seu mapa social (social graph) e histórico de interações, permitindo que novas redes prosperem.

Ao mesmo tempo, a portabilidade de dados poderá será expandida para além do nome e e-mail. A lei poderá exigir a transferência em tempo real de metadados comportamentais e histórico de engajamento, permitindo que o usuário leve todo o seu “perfil algorítmico” para um concorrente. Além disso, para proteger startups e empresas brasileiras de um lock-in empresarial ainda mais caro, a lei preveria a portabilidade de serviços de computação em nuvem, proibindo custos de saída abusivos, de modo que as empresas possam migrar seus dados e aplicações entre provedores sem penalização financeira.

2. Regulando algoritmos: escolha e proteção

Aqui entra uma das principais inovações do texto. O modelo de negócios baseado na retenção máxima de atenção seria atacado com duas frentes: escolha e proteção. As plataformas seriam obrigadas a oferecer ao usuário a opção de desativar o feed algorítmico baseado em perfilamento, permitindo que se opte por uma visualização cronológica ou agnóstica de conteúdo. Ao mesmo tempo, a lei traria proteções éticas, proibindo anúncios direcionados a menores de idade e o uso de dados sensíveis (saúde, orientação sexual, convicções políticas) para fins de publicidade, devolvendo ao cidadão o controle sobre como seus dados são usados para influenciar seu comportamento.

3. Lojas de aplicativos: concorrência e liberdade de pagamento

O Brasil pode vir a criar um mercado mais justo para desenvolvedores de aplicações e startups, combatendo o domínio absoluto das lojas de aplicativos (App Stores). Uma emenda neste sentido exigiria a previsão da permissão para o download direto de aplicativos (sideloading) e a instalação de lojas de aplicativos de terceiros. Paralelamente, as Big Techs seriam proibidas de impor seu sistema de pagamento e de praticar o anti-steering, permitindo que os desenvolvedores ofereçam opções de pagamento mais baratas e informem seus clientes sobre preços melhores fora do ambiente da loja, quebrando a “taxa de 30%”.

4. O fim do subsídio exclusivo

Para garantir que a interoperabilidade e a portabilidade sejam economicamente viáveis, seria proposta uma medida essencial para a realidade brasileira: a proibição de acordos de zero rating entre operadoras de telecomunicações e Big Techs. Esses acordos, que tornaram o uso de aplicativos dominantes (como WhatsApp ou Instagram) gratuito, enquanto o uso de concorrentes consome o pacote de dados do usuário, criaram uma barreira financeira quase intransponível para a entrada de novos agentes, especialmente para usuários de baixa renda. A proibição deste subsídio cruzado é vital para a verdadeira liberdade escolha no mundo digital.

5. Custeio da regulação e fomento à economia digital nacional

Para garantir todas estas inovações ao texto, seria necessário fortalecer a atuação regulatória e o fomento à economia digital. A fiscalização dos agentes sistêmicos exige recursos técnicos robustos. Por isso, deveriam ser criados dois mecanismos de financiamento. Primeiro, a Taxa de Fiscalização de Mercados Digitais (TFMD), paga pelos próprios agentes sistêmicos, garantindo orçamento e independência técnica da nova Superintendência do CADE. Segundo, uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE-Digital), incidiria sobre a receita de publicidade digital e outros instrumentos de monetização e seria destinada ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), transformando a receita gerada no Brasil por essas plataformas em investimento direto em tecnologia e ciência nacional.

Liberdade de iniciativa e escolha informada

É claro que a inclusão deste tipo de previsões no projeto de lei desperta ainda mais resistência ao texto por parte das big techs e seu lobby no Congresso Nacional. Mesmo do jeito que está o PL 4.675, com as obrigações mais estruturantes deixadas para análise de caso por parte do Cade, já teve sua requisição de urgência rejeitada na Câmara dos Deputados. Mas, justamente por isso, trazer a público as iniciativas que incomodam estas empresas daria à sociedade a chance de fazer a defesa de uma regulação econômica dos mercados digitais mais abrangente e justa para a economia digital brasileira.

O futuro da liberdade de escolha no ambiente digital dependerá da capacidade dos reguladores e legisladores de vencerem as complexas barreiras técnicas e temores fabricados sobre sua efetividade. Transformar as obrigações legais de interoperabilidade e portabilidade em soluções de engenharia que beneficiem realmente o usuário e, até, as democracias, é o desafio que está posto. Garantir recursos para que tudo isso se viabilize também. E o Brasil está diante de uma oportunidade de ouro para aprovar uma legislação mais inovadora que garanta estes avanços, além de abrir o debate mundial sobre os detalhes nada acessórios à livre concorrência na governança global da agenda digital.

 

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