Em novembro fará três anos desde que a startup OpenAI brindou a humanidade com a primeira versão de seu chatbot de inteligência artificial generativa. Da noite para o dia, milhões de pessoas passaram a se maravilhar com a aura mágica embutida em um sistema que, como um oráculo, respondia a tudo que se perguntava em poucos segundos e de forma assertiva. Apesar das imperfeições descobertas mais tarde, o ChatGPT será marcado para sempre na história como a fronteira da Internet como a conhecíamos. Mas se olharmos para quase três décadas atrás, veremos que também nos deslumbramos com outra invenção trazida por uma empresa de nome curioso. Em 1998, a Google nos apresentava a busca de conteúdo em milhões de computadores em tempo real alterando completamente a forma como o ser humano pesquisa, organiza e disponibiliza a informação e o conhecimento no século XXI.
Comparar a trajetória das duas companhias permite entender a atual ambição expansionista da empresa cofundada por Sam Altman em 2015 e seus impactos na concorrência. Anúncios realizados nas últimas semanas demonstram claramente que a OpenAI e seus investidores estão se movendo cada vez mais rápido para tentar transformar o mundo GPT em um “one-stop-shop” da Internet. E, pela primeira vez, surge uma empresa com apetite monopolista para desbancar a Google no reino da web.
O que não será tarefa fácil. Há menos de 20 anos, a empresa de buscas conseguiu se transformar na porta de entrada da vida digital das pessoas ao unir seu mecanismo de indexação de páginas da internet com um navegador rápido e robusto. A jornada se completou com a criação do sistema operacional de código aberto atualmente instalado em 75% dos telefones móveis do planeta.
Sistema operacional
Em um artigo recente, Enrique Dans qualifica a tentativa de Altman como uma ideia de transformar o GPT em um “sistema operacional invisível” a partir do controle de poder computacional e da interface. A OpenAI conseguirá o primeiro objetivo com o acordo fechado com a AMD para capturar até 6 GW de capacidade de processamento e participação acionária, sinalizando uma integração vertical via engenharia financeira. Na outra ponta, uma nova camada de “mini-apps” transformará o ChatGPT em plataforma, indo além de um produto. Já estão em fase de negociações a oferta de serviços como Spotify, Canva, Expedia e outros.
Mas a cereja do bolo foi o anúncio desta semana. O navegador Atlas levará a potência de IA da OpenAI para competir com a Google pela porta de entrada da internet dos usuários. A façanha inclui sidebar nativa do ChatGPT, “Agent Mode” e privacidade com opt-out de treinamento por padrão, algo ainda polêmico. Isso consolida a ambição de uma espécie de sistema operacional porque permite o controle onde o usuário percebe valor e onde os dados fluem. Neste caso, a disputa deixa de ser só “busca” versus “chat” e recai sobre navegador, agentes e computação como poder de mercado. Em poucos dias, a imprensa já passou a interpretar o Atlas como um ataque direto ao Chrome e gatilho de volatilidade de outras big techs. No dia do anúncio, as ações da Google tiveram queda de 3 a 4% e Microsoft também foi levemente afetada.
O ponto de partida importa
A Google venceu quando a web explodiu em excesso de informação e ela ofereceu um caminho simples em uma única caixa de texto: “digite e eu trago o melhor link”. Depois, fixou a vantagem com o Chrome e, no móvel, com o Android — defaults, distribuição e um ciclo financeiro irresistível alimentado por anúncios.
A OpenAI tenta reencenar esse ciclo começando de outro lugar: o agente embutido no navegador. Em vez de levá-lo a páginas, o agente executa tarefas: compara, reserva, compra, resume, preenche. Se der certo, o “primeiro gesto” do usuário deixa de ser “pesquisar” e vira “mandar fazer”. Na prática, é uma tentativa de mover a web do clique para a ação.
O segredo não é só conversar melhor; é coreografar passos com base no contexto do usuário, memória de preferências e acesso orquestrado a sites e serviços. A Google corre na mesma direção com seus “overviews” de IA e modos de agente, mas paga o preço do próprio legado: cada resposta errada vira manchete e ameaça o fluxo publicitário. A OpenAI, sem a âncora da publicidade, pode arriscar um design de experiência mais “agent-first”, desde que entregue qualidade. A régua é dura: um único erro corrói confiança e reintroduz o modelo anterior.
Apostas distintas
Na esfera da infraestrutura, os caminhos também são diferentes. A Google integrou-se verticalmente com TPUs e supercomputadores enquanto a OpenAI, que não fabrica chips, tenta influenciar na demanda pela interface e, com isso, ganhar poder de barganha para garantir computação e energia. É uma aposta coerente: se o ponto de entrada pertencer a você, fornecedores de hardware e nuvem baterão à sua porta. Mas há dois riscos. Primeiro, o custo de energia e rede: data centers já disputam megawatts com indústrias e cidades; sem produtividade difusa, sobra inflação setorial e Capex ocioso como mostramos aqui. Segundo, a lei dos retornos decrescentes de modelo gigante: nem toda tarefa pede um canhão; a vantagem pode migrar para modelos eficientes e que orquestrem agentes — campo onde a engenharia de produto pesa tanto quanto o estado da arte.
Outro dilema está na forma de sustentar o modelo de negócios. A Google construiu uma máquina de anúncios que financia tudo. A OpenAI parte de assinaturas e serviços corporativos, com um possível mercado de agentes e mini-apps. É uma virtude (menos dependência de cliques), mas também um teste: há dinheiro suficiente fora da publicidade para sustentar infraestrutura, P&D e distribuição global? A resposta exige escala real de uso produtivo: empresas rodando processos fim a fim, governos automatizando serviços, pequenas e médias empresas usando agentes como sistemas de TI portáteis. Se o Atlas se tornar o “Outlook/Chrome” da IA se fazendo onipresente no dia a dia, a receita aparecerá via assinatura, marketplace e serviços de alto valor agregado. Se virar só mais um app esperto, o fôlego encurta.
A história da Google ensina que defaults e auto-preferência rendem inquéritos antitruste. Navegadores-agentes trarão novas perguntas: quem vê a trilha de execução do agente? Como contestar a decisão “por que escolheu X e não Y”? As memórias de navegação pertencem ao usuário e são portáveis? Sem soluções credíveis — portabilidade de memórias, logs auditáveis, proibições de auto-preferência opaca — o caminho para se tornar “a nova Google” será travado por reguladores e com desconfiança pública. Paradoxalmente, um desenho pró-concorrência pode ser a vantagem estratégica: habilitar agentes de terceiros no Atlas, expor justificativas de decisão, permitir “rotas alternativas” visíveis. Confiança será a nova moeda.
Obstáculos concretos
Duas variáveis macro podem acelerar ou travar a corrida. Uma delas é da qualidade com custo controlado. Será preciso entregar respostas e ações confiáveis com latência e consumo de energia aceitáveis. Quem dominar a pilha eficiência do modelo, roteamento inteligente, cache e ferramentas integradas agrega valor sem explodir a conta de luz. Outro desafio de difícil transposição é a missão de sair do núcleo tech e chegar ao “resto da economia”. A Google ascendeu carregada por anunciantes de todos os setores; a OpenAI só “vira nova Google” se o agente gerar produtividade horizontal em áreas como logística, saúde, educação, serviços públicos, varejo, e se as pessoas sentirem, no bolso e no tempo, que o agente resolve de verdade.
A Google se tornou a empresa mais poderosa da web porque redefiniu o que era “entrar na internet”. A OpenAI quer redefinir o que é usar a internet. A primeira te levava; a segunda faz por você. Se o Atlas se tornar hábito (como “googlar”), se os agentes forem auditáveis e úteis, e se a infraestrutura não colapsar sob o próprio peso, a OpenAI pode vir a ocupar o trono simbólico de Google da era da IA. Mas o caminho passa por provar três coisas em sequência: (i) que o agente é melhor que o clique; (ii) que é confiável e contestável; (iii) que cria um círculo virtuoso de receita que sustente poder computacional sem recorrer à mesma captura publicitária que a Google dominou.
E se a bolha murchar? Mesmo num cenário de correção nos preços e no Capex, a aposta implícita da OpenAI, ficaria um “resíduo produtivo” como diz Cory Doctorow: GPUs mais baratas, talento abundante e um ecossistema aberto mais maduro. Esse resíduo pode favorecer quem controla a interface-agente porque é ali que o excedente vira serviço útil. A OpenAI, portanto, tem um plano que funciona em alta e em baixa: quando há abundância, ela impulsiona o uso; quando houver crise, ela barateia o custo do uso. A Google, por sua vez, tem a vantagem de distribuição e hardware próprio. Não está fora do jogo. Só agora disputa um campeonato em que não domina as novas regras.
A OpenAI pode ser a “nova Google” se transformar agentes no navegador no novo default da vida digital e se ancorar em um contrato social de confiança (transparência, portabilidade, centralização abusiva). A Google ainda é a Google — capitalizada, integrada e distribuída. O que muda é o “primeiro gesto”: se o século XXI começou com “pesquisar”, as próximas décadas podem começar com “faça”. Quem possuir esse gesto, possuirá a era da IA.
