Dez anos atrás, tive o privilégio de liderar a implementação de muitas inovações digitais baseadas em inteligência artificial para uma das principais operadoras de telecom do planeta.
Mais do que a busca de eficiências financeiras (principalmente, na época, por intermédio de projetos de machine learning e RPA), nosso foco consistia na transformação da experiência do cliente (nos canais digitais, marcadamente no app) a partir de interações mais humanizadas, resolutivas e personalizadas.
Foram tempos pregressos ao boom das IAs generativas e suas múltiplas possibilidades conversacionais. Ainda não havia todo o hype e investimentos globais massivos nessa indústria, mas já então conseguíamos excelentes retornos de assertividade e feedback positivo dos usuários (chegamos a obter, em operação continuada, taxas de resolutividade pelo bot entre 85-90%, e fomos parte das estratégias de marketing via comunicação massiva em anúncios da empresa de nosso avatar de IA, de forma muito inovadora e em linha com tudo que a avatar Lu representa para a varejista Magazine Luíza).
Desde então, esses investimentos e projetos somente aceleraram, e houve um enorme amadurecimento do conhecimento disponível sobre o tema. Atualmente, existem estudos de caso de inteligência artificial aplicados em praticamente todos os departamentos de uma operadora, ferramentas abundam, ChatGPT é onipresente na vida dos clientes e até o Office dos colaboradores é “vitaminado” por IA.
Do antifraude e jurídico até os canais digitais e o atendimento telefônico na linha de frente com o cliente, ouso dizer que não há mais nenhuma operadora de serviços de telecomunicações no país que não tenha experimentado e utilizado IA de forma significativa em seus negócios. Algumas possuem projetos de letramento digital e adoção massiva pelos colaboradores em curso; outras, possuem gabinetes transversais de coordenação da governança e implementação focada de IA, para assegurar a captura de valor real pelos múltiplos projetos em curso; outras, ainda, vendem projetos e fazem consultoria a empresas terceiras para a adoção com sucesso de inteligência artificial em seus negócios. Algumas, por sua vez, têm avatares que representam as personas dos colaboradores dos principais departamentos e jornadas; e assim por diante.
Em eventos locais recentes dos quais participei nos últimos meses, fiquei positivamente assombrado com a quantidade e a qualidade de aplicações diferentes da inteligência artificial (inclusive generativa) em projetos de operadoras de toda a América Latina, marcadamente no Brasil. Bots e URAs inteligentes já nem se discute, assim como use cases vinculados à maior resolutividade e eficiência em temas jurídicos, detecção de falhas de rede e prevenção de falhas massivas. Múltiplos cases de aplicação em marketing, como por exemplo na compra de mídia, já estão ocorrendo; treinamento e capacitação dos colaboradores em IA consomem relevantes investimentos da verba anual dos departamentos de recursos humanos.
Relatório recente da NVIDIA realizado com 450 profissionais de telecom em todo o planeta reporta que 97% estão analisando ou adotando soluções de inteligência artificial, sendo os principais objetivos reduzir custos e gerar novas fontes de receita a partir da melhoria da experiência de seus clientes, do aumento da produtividade de suas equipes, e da melhoria das operações de suas redes. O mesmo estudo indica que mais da metade dos respondentes já implementaram seu primeiro estudo de caso baseado em IA generativa, e que 65% deles estão aumentando seus investimentos em IA ao longo de 2025.
Estudo publicado em fevereiro pelo Fórum Econômico Mundial também aponta excelentes notícias para as empresas de telecomunicações no tocante ao uso de IA. Devido à sua experiência com projetos nessa área já de mais de uma década, a adoção de soluções baseadas em modelos preditivos e machine learning é, de fato, quase onipresente na indústria – e, segundo análise da consultoria McKinsey, os colaboradores do setor são os mais favoráveis à adoção de IA, entre todos os setores econômicos analisados globalmente.
Na mesma linha, relatório recente da Fortune Business Insights reporta que o valor global do mercado de IA em telecomunicações (envolvendo todos os investimentos desde infraestrutura até aplicações para usuários) passará de US$ 3,34 bilhões em 2024 para US$ 58,74 bilhões em 2032 (um CAGR de 43,3% durante o período projetado!).
Ora, são investimentos extremamente massivos e relevantes, que podem ajudar substancialmente as operadoras a otimizar sua alocação de capital, melhorar a experiência proporcionada aos consumidores, descobrir novas avenidas de receita e fontes de monetização da base e automatizar massivamente seus processos, dentre outros ganhos esperados com essas tecnologias.
Por outro lado, desde meus tempos de pioneiro na implantação deste tipo de solução na indústria, a reputação das operadoras de telefonia junto aos usuários de seus serviços não melhorou muito. Infelizmente, esse segmento da economia tem resultados baixíssimos em termos de satisfação dos clientes, NPS e afins. Quando comparados a outros setores em pesquisas especializadas (algumas delas, publicadas aqui mesmo na Mobile Time em passado recente), os resultados de telecomunicações nos rankings intersetoriais de experiência do cliente são inferiores àqueles de setores altamente criticados pelos clientes (por exemplo, operadoras de saúde, empresas aéreas e bancos). O mesmo ocorre em sites como o Reclame Aqui e afins.
Conectividade é uma questão de inclusão social tão relevante e necessária quanto serviços de água e esgoto ou prestação de energia elétrica, e deveria ser tratada como tal; por outro lado, ainda são recorrentes as reclamações de clientes associadas ao mais básico dessa prestação de serviços (falta de cobertura, qualidade de sinal, problemas técnicos, serviços de instalação etc.). E são essas reclamações as que mais afetam a imagem do setor perante a sociedade.
Não podemos nos esquecer de que é reclamação antiga (e justa) da indústria que os principais benefícios da digitalização da sociedade (financeiros e de imagem) ficaram para as big techs, enquanto o ônus de prestar serviço tão relevante (e dos investimentos em CAPEX) ficou para as altamente reguladas prestadoras de serviço. A capitalização das principais telcos de 2018 até 2024 na bolsa americana aumentou 7%, enquanto o S&P 500 aumentou cerca de 170% e o valor de mercado das empresas digitais aumentou 230%.
Mas por que os usuários não percebem o retorno de todos esses investimentos e esforços em seu relacionamento com as marcas de telecom? Por que o trabalho massivo realizado pelas operadoras na adoção de IA ainda não se reverteu em ganhos tangíveis e generalizados junto ao mercado?
Em meu entendimento, parte do problema passa pela adoção “setorizada” e pouco transversal dos estudos de caso nas empresas. A IA possibilita que todos os principais processos da cadeia de valor e prestação de serviços sejam revistos desde sua concepção, e refeitos – mas isso é um desafio brutal de liderança e um risco de continuidade muitas vezes pouco compreendido nas empresas, sem o apoio de um olhar especializado externo que não tenha interesses na prestação de serviços de tecnologia para as próprias operadoras, por exemplo.
Um outro elemento que afeta e não deve ser subestimado é a falta de clareza na mensuração dos ganhos objetivos para o negócio e para o cliente. Estudos de caso fragmentados e “projetos-piloto” dificilmente escalam para a real necessidade de um business massivo, profundamente dependente de sistemas e repleto de possíveis pontos de falha na experiência ao longo da jornada do cliente.
Ademais, quando se entra de fato no detalhe dentro das empresas do setor, ainda há desafios de toda ordem, como, por exemplo, de qualidade de dados e processos de ETL, modelagens, prioridades internas, governança estruturada e correta gestão de risco vs. retorno, dentre outros.
Minha experiência pessoal como consultor especializado no tema denota, à luz de nosso framework de gestão para a excelência na captura de valor a partir do uso de IA, que grande parte das barreiras à mudança efetiva passam por fatores “humanos”, e não necessariamente técnicos.
É sintomático pensar que praticamente todos os cases de “referência” em IA mais comentados pelo mercado estão vinculados a empresas de e-commerce e aplicativos de marketplaces, plataformas de mobilidade como a Uber, varejistas de moda como a Renner ou mesmo empresas como Magalu e as big techs. Conheço esses cases e são realmente interessantes e muito bons – mas ouso dizer que as telcos tinham tudo para não estar “devendo” nada a qualquer deles, dado seu alcance, capacidade de dados, aporte de investimentos e capital humano.
Não tenho quaisquer dúvidas de que o assunto “inteligência artificial” provavelmente será o maior destaque da Futurecom 2025, principal evento de mercado do setor e que ocorrerá esta semana no São Paulo Expo. Dezenas de palestras e workshops abordarão o tema. Executivos de todas as empresas falarão com propriedade e orgulho de seus cases de mercado, implantando soluções baseadas em IA. E a experiência do cliente continuará sofrida e muito aquém do potencial da indústria.
Após telecom perder a liderança em tantas fronteiras tecnológicas e de inovação para outros setores, será que não conseguirá dessa vez se apropriar com justiça de todos os incríveis esforços em curso para a adoção massiva de IA em prol do cliente? Essa é, para mim, a principal encruzilhada das operadoras e demais empresas do segmento na era da inteligência artificial anywhere.