Com a pretensão de combater a disseminação de notícias falsas através de aplicativos de mensageria, o projeto de lei 2.630/2020, conhecido como PL das Fake News, propõe a rastreabilidade das mensagens para identificar quem originou determinado conteúdo falso. Só que as medidas propostas, além de ineficazes tecnicamente, podem propiciar o surgimento de um sistema de vigilância em massa, ferindo a liberdade de expressão e a privacidade do público, além de onerar os serviços torná-los mais lentos: essa é a opinião do ITS Rio, que elaborou um relatório técnico sobre o tema.

O artigo 10 do referido PL exige que as plataformas de comunicação guardem por três meses os dados de todas as mensagens que tenham sido encaminhadas por mais de cinco usuários e que tenham chegado a pelo menos 1 mil pessoas em um intervalo de 15 dias, “resguardada a privacidade do conteúdo das mensagens”.

O PL, na prática, obrigará as plataformas a guardarem metadados de todo o seu tráfego de mensagens, pois será impossível prever, a priori, qual mensagem vai se tornar viral ou não, nem qual será denunciada ou não como fake news. Além disso, precisará criar um metadado novo, um hash, que identifique a mensagem de acordo com o seu conteúdo, mas sem revelá-lo.

A medida, contudo, é ineficaz, por várias razões. Primeiro, porque é a disseminação de um conteúdo não perfaz uma linha reta e de fácil rastreamento. Pode começar de vários pontos diferentes, e não necessariamente um trecho investigado conduzirá de fato ao criador da mensagem. Segundo, porque bastará alterar minimamente o conteúdo em si para que ele não seja mais identificado pelo mesmo hash: basta acrescentar uma vírgula, um espaço, substituir uma letra etc. Terceiro, é possível também hackear metadados e apontar para uma pessoa inocente como autora inicial de determinada mensagem. Quarto, o sistema não avaliará o contexto de uma mensagem e isso pode causar problemas para quem, por exemplo, tiver compartilhado uma notícia falsa mas acompanhada de uma crítica. Além disso, a lei brasileira não poderia se aplicar a usuários de outros países. Logo, bastaria para o criminoso usar um número internacional para ficar livre do rastreamento. “Trata-se, na realidade, de um sistema fácil de ser burlado por aqueles que assim desejarem e ineficaz para combater a desinformação”, resume o ITS Rio.

Há também riscos de segurança. “O que o PL obriga é que as informações sejam guardadas preventivamente pelos provedores de aplicação de maneira centralizada em seus servidores (e não de maneira distribuída nos dispositivos terminais dos usuários) e excluídas passados 3 meses. Esse é um grande risco para a criptografia, pois cria um ponto de ataque centralizado para toda rede do provedor de serviços”, escreve o ITS Rio.

No entender da entidade, o PL das Fake News substitui o conceito de “privacy by design” pelo de “surveillance by design”, criando um sistema de vigilância massiva: “Na era digital, o legislador brasileiro está criando um sistema de vigilância massiva que coloca direitos fundamentais, a ordem democrática e a própria economia digital em risco”. E acrescenta: “cria-se um estado de vigilância em massa obrigatório por parte das plataformas de mensageria privada a mando do próprio Estado, contrariando os princípios fundadores da legislação nacional sobre o tema, em especial do Marco Civil e da LGPD.”

O ITS Rio alerta que mesmo sem armazenar o conteúdo da mensagem em si, os metadados podem revelar muito sobre uma pessoa, e isso bota em risco especialmente ativistas e membros de minorias, que se sentirão desprotegidos para se comunicar por essas plataformas de mensageria: “Em um quadro no qual a percepção genérica será de que tudo que qualquer pessoa escreve pode ser rastreado até elas, há grande probabilidade de que muitos, por vergonha ou medo de retaliação, deixem de se expressar ou de se comunicar acerca de diversos temas importantes para elas e para a sociedade.”

Por fim, o rastreamento em massa vai tornar os serviços mais lentos e caros: “Aplicativos de mensageria privada geralmente consomem poucos dados e são considerados, assim, aplicações “leves”, o que torna seu uso mais acessível e democrático. Nada obstante, a rastreabilidade acaba exigindo um aumento considerável do fluxo de dados, sobrecarregando servidores e tornando o serviço mais lento e oneroso.”

O caminho para combater a propagação de fake news, na opinião do ITS Rio, seria adotar medidas de limitação de encaminhamento de mensagens (o que o WhatsApp já faz, vale ressaltar); talvez viabilizar escutas pontuais, temporárias e muito bem justificadas; e seguir o dinheiro, ou seja, identificar quem bancou ou recebeu dinheiro para disseminar determinadas mentiras.