Em um clique no aplicativo, o carro abre a porta. Também no app, é possível ver os gastos com gasolina, quanto andou no veículo e pagar pelo serviço. Mas não são apenas essas as comodidades que o carro compartilhado oferece. Além de tudo estar na palma da mão, o carsharing significa o fim de uma série de contas a pagar – combustível, seguro, IPVA, por exemplo – e representa o fim de uma era: o desejo de possuir um automóvel. Talvez esse passo seja o mais difícil para o brasileiro. Desapegar-se do bem em si. Segundo estudos realizados na Califórnia, um carro compartilhado tira das ruas de nove a 13 veículos. De acordo com um estudo feito pela WRI, atualmente, 5 milhões de pessoas no mundo compartilham veículos e o número deve chegar a 35 milhões em 2025.

Lilian Lima, líder do comitê de mobilidade da ABO2O. Foto: divulgação

“É uma mudança de comportamento de consumo, principalmente”, afirma Lilian Lima, líder do comitê de mobilidade da ABO2O em conversa com Mobile Time. Sua impressão é que o apego ao automóvel será substituído pela necessidade de se tirar mais veículos das ruas e diminuir a emissão de gás carbônico. E o compartilhamento de carros deve aumentar também o uso de bicicletas para micromobilidade, assim como as caminhadas. “A pandemia mexeu muito em como as pessoas se locomovem. Se eu preciso me deslocar, como não aglomerar nos transportes públicos?”, questiona. Uma das missões do comitê é conversar com os políticos e candidatos a cargos públicos para que eles incluam a mobilidade urbana em suas plataformas de campanha. “A mobilidade do futuro é multimodal. É preciso estimular o deslocamento de forma sustentável”, resume. E caberia ao governo incentivar a integração dos modais. “Não é uma transformação rápida, mas vem acontecendo”, conta Lima.

Não à toa, para a responsável do comitê de mobilidade da AB020, a economia compartilhada precisa de políticas públicas para se expandir mais rapidamente. “A França é um exemplo. Lá, existem incentivos para que as pessoas se desloquem com mais mobilidade, para quem quer fazer manutenção da sua bike parada, por exemplo. E, em Paris, existe o projeto “Cidade em 15 minutos”, proposta pela atual prefeita, que oferece incentivos para quem dá carona. Infelizmente, não temos exemplos como esses no Brasil”.

Millennials

Os jovens deverão ser os grandes responsáveis pela mudança de comportamento e, assim, impulsionar o carsharing. Segundo um estudo feito pela Deloitte, os millennials, que equivalem a 34% da população brasileira, preferem o acesso e usar ferramentas de compartilhamento ao invés de serem donos do veículo. O estudo foi citado por Peter Cabral, cientista político especializado em economia, gestão de negócios e ciência da computação/programação e expert da SingularityU Brazil, em conversa com Mobile Time. “Se transportarmos esse percentual e pensarmos mundialmente, são quase 2 bilhões de pessoas. É um mercado muito significativo”, reforça.

Para o futuro, Cabral prevê uma maior integração entre os transportes públicos com as soluções de micromobilidade e cada vez mais gente usando esses diferentes modais. “Os millennials querem se relacionar com produtos e serviços digitais. As novas gerações são intolerantes a soluções ‘sujas’ e o fato de uma opção beneficiar um em detrimento de muitos outros (como a compra de carros, por exemplo) é um ponto a favor do carsharing”, resumiu.

Uma das questões é que o carro é um ativo caro e os custos operacionais e de manutenção são altos. Então, como as empresas conseguem receita? “São necessários modelos de negócio criativos”, explica Cabral. “Mídia como nas bicicletas compartilhadas é uma forma de se reduzir a tarifa para o usuário”, exemplifica.

A parceria com o poder público também é uma forma de reduzir os custos e viabilizar o modal. Uma das formas é criar “vagas verdes”, para que os veículos compartilhados tenham sempre espaços em estacionamentos públicos, sem que o usuário tenha dor de cabeça para encontrar vaga. “As empresas privadas precisam que o poder público desenvolva políticas para que elas possam prosperar e fazer os investimentos necessários, como o aumento de frota”, diz Cabral. “Essas empresas não ficam em pé somente com a receita do usuário. O poder público deve criar um ambiente que gere viabilidade de retorno desse investimento”, explica.

Vale lembrar: Cabral foi um dos pioneiros da economia compartilhada no Brasil ao implementar a Bike Rio, 10 anos atrás. O estudioso e empreendedor acredita que a iniciativa foi a mola propulsora necessária para o surgimento e a expansão de outros meios de transporte alternativos, como o patinete e os veículos elétricos. “Implementamos o sistema em 2011, numa cidade extremamente violenta. Na época, não havia qualquer expressão de economia compartilhada na América Latina e começamos o projeto em parceira com o Itaú. A bicicleta estabeleceu uma base sólida. E o desafio foi cultivar o sentimento de compartilhamento e coletividade”, diz.

As empresas e a pandemia

Na prática, o compartilhamento de carros reduz a emissão de CO2 e o trânsito, além de reforçar a cultura de coletividade e de zelo por aquilo que é de todos. Mas e como modelo de negócio para as empresas? Como elas sobreviveram à crise causada pelo novo coronavírus?

Turbi

Luiz Bonini é chief growth officer da Turbi. Foto: divulgação

Com relação à pandemia, as empresas, assim como o País como um todo, sofreram um forte baque. Ao menos no início, quando as medidas de restrição deixaram as pessoas em casa, evitando ao máximo deslocamentos. No segundo semestre de 2020, houve uma recuperação, como comentado por representantes da UseCar, Velo-City, VAMO e JoyCar, que conversaram com Mobile Time sobre suas operações. Foi o que aconteceu com a Turbi, empresa de compartilhamento de carros que nasceu na Grande São Paulo e hoje prevê expansão para outros municípios da região.

“Em 2020 a Turbi aumentou o faturamento em 4x e manteve o forte crescimento do negócio, mesmo em um ano de incertezas. No pior momento da quarentena em 2020, entre abril e maio, perdemos 40% da demanda, frente uma perda de 90% das locadoras tradicionais. Com a reabertura da economia, o crescimento foi muito grande e fechamos o ano com nossos melhores meses de faturamento por carro. Além disso, pudemos expandir nossa atuação para cinco cidades da Grande São Paulo (região do ABC, Guarulhos e Osasco)” resumiu Luiz Bonini, chief growth officer da startup.

Com a JoyCar a pandemia não afetou negativamente os negócios, pelo contrário. A startup, no entanto, é diferente das demais ouvidas por Mobile Time. Iniciou como uma empresa de carsharing, mas transformou seu negócio e, atualmente, oferece às empresas sua tecnologia proprietária de compartilhamento de carros. Ela desenvolveu uma plataforma para o mercado B2B que usa dispositivos de telemetria e um aplicativo para gerenciamento do automóvel. Durante a crise sanitária acabou fechando três importantes contratos com Raízen, Honda e Hyundai.

“O carro é um ativo caro e subutilizado. Dentro do mundo corporativo ainda existe uma cultura forte de dar o veículo para cada colaborador e seu uso é exclusivo. A gente ajuda as empresas a adotar a cultura de carro compartilhado”, explica Rafael Taube, CEO da JoyCar.

JoyCar

Rafael Taube é CEO da JoyCar, empresa proprietária de tecnologia de compartilhamento de carro. Foto: divulgação

“Fechamos um contrato com uma empresa com 400 carros mapeados. Neste caso, ela devolveu 200 veículos para a locadora e passou a ter uma frota compartilhada de 200. Agora, esses carros que sobraram são usados por quase 1,4 mil colaboradores. É uma grande mudança de comportamento”, explica Taube. “Estamos falando de uma economia, por baixo, de R$ 7 milhões ao ano”, estima o executivo da JoyCar, pensando que um carro custa em torno de R$ 36 mil por ano.

A UseCar também expandiu os seus negócios e está otimista com o futuro. A startup fez uma joint venture com o Carbel Auto Group, que possui mais de 15 concessionárias de veículos de nove marcas diferentes, 11 lojas de venda de carros seminovos, além do BS2.

“Antes tínhamos uma pequena frota. Com a unificação, criamos uma nova empresa, ganhamos fôlego e trocamos o nome de Smart Fleet para UseCar. Começamos a ter mais força para crescer”, explicou Gustavo Corrêa, executivo de expansão e novos negócios da UseCar, em conversa com Mobile Time.

Para Corrêa, esse é o momento ideal para se desenvolver o compartilhamento de carros. “Foi tudo acontecendo muito rápido. O mercado de montadoras de automóveis está em um momento de transformação. Hoje, muitas estão mudando seus modelos de negócio, fazendo carro por assinatura, pagamento pelo uso do produto”, explica o executivo.

Já a Velo-City optou por parar com as operações nos primeiros meses de crise causada apelo novo coronavírus, mas voltou a operar em junho do ano passado. Apesar da crise, os negócios vão bem, explica Daniel Bittencourt, cofundador e diretor executivo da startup. “Demos uma segurada com a pandemia e voltamos a funcionar em junho e as pessoas voltaram a usar o carsharing. Nossa perspectiva é terminar o ano com 30 carros na base (ao todo) e chegar em 2022 com 70 veículos”, calcula o executivo.

Bittencourt aproveitou o fato de ter uma locadora de automóveis para desenvolver o modelo de negócios da startup, oferecendo o sistema de carsharing dentro de condomínios no Rio de Janeiro. Atualmente, a empresa conta com seis bases e cinco veículos em cada. As expansões acontecem aos poucos, conforme as parcerias com os condomínios (localizados principalmente na Barra da Tijuca) são fechadas. Recentemente, abriram uma base em Niterói. Desde janeiro de 2020, o app da Velo-City foi baixado 600 vezes, foram realizadas mais de 700 corridas e foram adicionados veículos SUV à frota.

Para Israel Araújo, diretor comercial de transportes sustentáveis da Serttel, responsável pelas operações da VAMO, em Fortaleza, as restrições de mobilidade que ocorreram ao logo da crise sanitária baixaram os números de viagens. “Mas sempre que as atividades voltam a funcionar, o número sobe. Os carros compartilhados são uma forma segura de se locomover na pandemia, pois são transportes individuais. Esse ano, sentimos uma melhora considerável, exatamente pelo motivo citado anteriormente: as pessoas estão procurando uma forma segura para se deslocar. Não acho que a pandemia deva prejudicar o carsharing como um todo, pelo contrário”, resumiu o executivo.

A VAMO é uma parceria com a prefeitura de Fortaleza com a Serttel, empresa especializada em soluções digitais para mobilidade fundada em 2016. Naquele primeiro ano de operação contabilizou 430 viagens realizadas. eE 2019 foram 1,73 mil. O número continuou subindo mesmo com a pandemia: chegou a 1,96 mil viagens em 2020. E, até o fim de maio deste ano, a empresa contabilizava 1,355 mil viagens.

A pandemia também causou baixas no setor. A MoObie precisou suspender seu serviço em maio por tempo indeterminado. A empresa não encerrou em definitivo as atividades e estima voltar quando a pandemia der uma trégua. A MoObie é uma plataforma P2P de compartilhamento de carros que, em 2019, adicionou a opção de motoristas de aplicativos alugarem veículos pela ferramenta.

Modelos de negócio

Para crescer, as empresas ouvidas por Mobile Time adotaram diferentes modelos de negócios. A Turbi, por exemplo, começou oferecendo aluguel de automóveis em São Paulo por hora para o consumidor final. Em seguida, abriu para que empresas pudessem oferecer o serviço a seus colaboradores. Recentemente, inaugurou o aluguel mensal de carros e aposta no modelo de assinatura. O novo modelo segue a mesma dinâmica do aluguel por hora já praticado pela empresa, no qual é possível realizar uma reserva ou retirar o veículo no mesmo instante, e é válida para todos os modelos de carros oferecidos pela Turbi, com custo a partir de R$ 2,1 mil (diária de R$ 70). O cliente também pode estender o tempo de uso do veículo para além dos 30 dias, de acordo com a conveniência. A Turbi começou em 2017 com cinco carros; em 2019 passou a ter 512. Atualmente, conta com mais de 2 mil carros distribuídos em mais de 500 estacionamentos pela Grande São Paulo com uma média de 1,5 mil viagens por dia.

A UseCar e a Velo-City possuem modelos de negócio semelhantes. Ambas investiram em parcerias com condomínios residenciais e empresariais para instalar seus carros e permitem apenas que aquela comunidade usufrua dos seus serviços. Assim, as startups crescem um pouco mais lentamente e requerem que seus usuários devolvam para o mesmo estacionamento os veículos que pegaram.

Para escalonar, a UseCar quer formar parcerias com construtoras e administradoras de condomínio, como a APSA. A empresa, em menos de quatro meses, está com 70 operações nas cidades onde opera. A UseCar cobra por hora. O usuário entra no app, faz o cadastro, o síndico precisa aprovar a pessoa para comprovar de que se trata de um morador do condomínio. Em seguida, pode reservar o veículo no dia e na hora que deseja. A cobrança é feita por tempo de uso e deve-se devolver o carro no mesmo lugar/condomínio.

Velo-City

Carlos Eduardo Fonseca, sócio da Velo-City (à esq.) e Daniel Bittencourt, diretor executivo da startup. Foto: divulgação

A Velo-City, também presente na Barra da Tijuca, acredita que está num ecossistema ideal para acelerar seus negócios. “A Barra é uma cidade à parte. São mais de 17 hotéis de grande porte, muitos shoppings, escritórios corporativos e hospitais. Tem todo um ecossistema que precisa de mobilidade. E para rodar aqui é importante ter carro”, resume Carlos Eduardo Fonseca, sócio e cofundador da Velo-City. De acordo com o empresário, 10% da frota do Rio de Janeiro está na no bairro da zona oeste carioca. “Primeiro queremos atender aqui e bem. O mercado da Barra é muito grande. Pretendemos expandir forte por aqui. Só o condomínio Rio 2 tem 25 mil moradores”, exemplifica.

De acordo com Fonseca, a Velo-City está com as contas equilibradas. “A parte operacional está em equilíbrio. E vimos que deu certo. Temos demanda para outros setores. Podemos colocar em outros condomínios, em shoppings. Temos ainda a possibilidade de franquear e fornecer o sistema de compartilhamento de carro (como white label). Nosso sistema também tem a capacidade para colocarmos patinete e motos, por exemplo. Já foi testado”, conta Fonseca.

Já a VAMO possui um modelo de negócios baseado em financiamento através de patrocinadores interessados em vincular suas marcas ao projeto e também de cobranças realizadas aos usuários pela utilização dos veículos.

Para os empreendedores, o carsharing já é uma realidade no Brasil. As vendas de automóveis estão retraídas e a solução é o aluguel ou o compartilhamento do veículo. E o carsharing é a opção mais em conta. Além da sustentabilidade financeira, o modal contribui para o meio ambiente: “um carro compartilhado tira 13 carros da rua”, relembra Bonini, chief growth office da Turbi. “Acreditamos na multimobilidade, em que as pessoas têm liberdade de escolha para selecionar a melhor alternativa para o deslocamento que pretende fazer”, finaliza.