Na semana passada, a notícia do fim da Zuum, última plataforma de dinheiro móvel associada a uma operadora celular em funcionamento no Brasil, serviu de mote para Mobile Time debater as razões pelas quais tantas iniciativas das teles nesse segmento não terem decolado – vide Oi Paggo, Meu Dinheiro Claro, TIM Multibank Caixa etc. Este noticiário procurou o diretor de dinheiro móvel da GSMA, Gunnar Camner, para comentar o assunto. O encerramento das atividades da Zuum, que era fruto de uma joint-venture entre Mastercard e Telefônica, representaria o sepultamento do mobile money no País? O executivo da GSMA acredita que não. Ele reconhece que a falta de interoperabilidade com o sistema financeiro tradicional dificultou a atuação das operadoras, mas demonstra otimismo diante do interesse do Banco Central de criar uma plataforma nacional para pagamentos instantâneos, o que facilitaria o surgimento de novos serviços financeiros.

Mobile Time – Qual é a avaliação da GSMA sobre as iniciativas de dinheiro móvel no mundo? Por que deram tão certo na África e não no Brasil?

Gunnar Camner – O dinheiro móvel tem sido uma das novidades mais interessantes em serviços financeiros da última década. Ao fim de 2017, a indústria de mobile money alcançou 690 milhões de contas na América Latina, África e Ásia. Um número atualizado, de 2018, será divulgado durante o Mobile World Congress, em Barcelona, no fim de fevereiro. Assim, o dinheiro móvel tem sido um impulsionador do crescimento econômico em mercados emergentes, especialmente por digitalizar pagamentos, conferir transparência e aumentar o Produto Interno Bruto (PIB). Na África Sub-Saariana o dinheiro móvel se tornou para as operadoras celulares tão importante quanto o tráfego de dados, representando de 10% a 20% do faturamento das teles.

No Brasil, em torno de 40% da população permanece desbancarizada, o equivalente a 80 milhões de pessoas, e a inclusão financeira não evoluiu de forma significativa nos últimos anos.

Embora seja difícil apontar uma única razão (para o mobile money não ter decolado no Brasil), algumas variáveis parecem ter contribuído:

1) Como a maioria da população brasileira é bancarizada, a interoperabilidade entre provedores de dinheiro móvel e o sistema financeiro tradicional se torna importante. Aprimoramentos na infraestrutura financeira junto com o acesso aberto a tais serviços para atores que não sejam bancos poderiam ter impulsionado o mercado. Os provedores de dinheiro móvel no Brasil conseguiram driblar a barreira para transações de contas móveis para bancos mantendo contas em diferentes bancos e realizando transferências on-net. O inverso, ou seja, transferências de bancos para contas móveis, em geral não eram disponibilizadas pelos bancos.

2) A falta de alternativas de parcerias para conversão de dinheiro em espécie em tempo real no País inteiro. No Brasil, o sistema de “boleto” é como um voucher de pagamento universal. Praticamente qualquer empresa pode gerar um boleto para um indivíduo pagar em qualquer agência bancária. Entretanto, esse sistema é offline e os boletos podem levar muitos dias para passarem pelo processo de clearing. Logo, não é um canal viável para depósitos para os provedores de dinheiro móvel.

3) O tamanho e a complexidade do mercado brasileiro tornam necessárias as parcerias para conversão de dinheiro. A estrutura do sistema de boletos fez com que os provedores de dinheiro móvel procurassem os grandes varejistas brasileiros em busca de parcerias, o que trouxe outros desafios próprios.

4) Outro desafio foi o desequilíbrio nas regras do jogo, no que diz respeito aos preços e ao acesso  a canais de cash-out (retirada) mantidos pelos bancos. Caixas eletrônicos estão espalhados por todo o Brasil, especialmente nos centros urbanos, mas a falta de equilíbrio nas regras significa que atores que não sejam bancos não tivessem acesso de fato a esse canal – ou as tarifas para retirada eram proibitivas ou os provedores simplesmente bloqueavam o acesso.

A boa notícia é que o Banco Central do Brasil está trabalhando na construção de uma plataforma rápida para pagamentos, o que deve resolver a questão da interoperabilidade em tempo real entre todos os provedores de serviços financeiros. Isso consistirá em um passo importante para provedores pré-pagos. Aliás, gostei do seu artigo sobre o tema.

Onde mais o dinheiro móvel deu certo, além da África?

A Ásia é a região com as maiores taxas de crescimento. Em 2017, havia 235 milhões de contas de dinheiro móvel ativas lá, um crescimento de 47% em relação a 2016. Exemplos de sucesso na América Latina são encontrados no Paraguai e na América Central, em países como El Salvador e Guatemala.

Recentemente, a GSMA anunciou que havia 690 milhões de contas de dinheiro móvel no mundo, sendo 114 milhões em serviços de operadoras móveis. Qual é a definição de “dinheiro móvel” adotada pela entidade? Quem controla as demais 576 milhões de contas?

690 milhões é o número de contas cadastradas. O número de 114 milhões se refere, provavelmente, ao de usuários ativos nos últimos 30 dias (MAUs, na sigla em inglês). A maioria dos dois números está nas mãos das operadoras. Acreditamos que muitas organizações têm a capacidade de prover serviços financeiros relevantes e melhorar o acesso em comunidades que hoje carecem deles. Operadoras estão bem posicionadas para atuar nesse mercado por conta do seu alcance, confiança e capacidade de investimento nos recursos necessários. Hoje, prestar serviço para os desbancarizados requer investimento e resiliência.

A GSMA define como “dinheiro móvel” um serviço com as seguintes características: 1) que permita a transferência de dinheiro, assim como a realização e o recebimento de pagamentos através de um telefone celular; 2) que ofereça uma rede de pontos físicos para transações, o que pode incluir agentes fora de agências bancárias e caixas eletrônicos, o que torna o serviço acessível a todos; 3) deve ser disponível para os desbancarizados (pessoas que não têm acesso a uma conta bancária em uma instituição financeira tradicional). Serviços de mobile banking ou de pagamentos, como Apple Pay e Google Wallet, que utilizam o telefone celular como mais um canal de acesso a um produto bancário tradicional, não estão incluídos. A definição da GSMA é amplamente adotada como uma referência pela indústria – o Banco Mundial utiliza a nossa definição em seus relatórios.

Ainda há espaço para operadoras atuarem com serviços financeiros no Brasil? Quais serviços por exemplo? E como poderia ser o modelo de negócios?

É verdade que ainda não se encontrou um modelo que funcionasse no Brasil, mas isso se deve a vários fatores, como mencionado anteriormente. O modelo de negócios para dinheiro móvel não é simples – requer investimento, resiliência, uma compreensão profunda do mercado e um conjunto adequado de produtos que também funcionem com o ecossistema financeiro atual. Temos visto uma evolução do papel tradicional dos provedores de serviços financeiros ao redor do mundo, e há muitas oportunidades para as operadoras exercerem um papel contributivo ou mesmo de liderança, inclusive no Brasil. A Telefônica, por exemplo, tem várias fintechs presentes no portfólio de investimento de sua aceleradora de startups no Brasil, a Wayra.