Apesar de ser uma área em crescimento no Brasil, o mercado de tecnologia ainda tem pouca representatividade de pessoas das periferias. A Mais1Code foi criada, em 2020, para mudar esse cenário, proporcionando aulas de programação gratuitas a essa população. Como trabalho final, os alunos projetam soluções tecnológicas, como aplicativos móveis, para resolver problemas das suas realidades.

A escola online de programação é destinada a pessoas de baixa renda e moradores de “quebradas”, como favelas, periferias e conjuntos habitacionais. Por meio do curso, alunos de todo o País podem aprender a programar e se inserir no mercado de trabalho. Desde 2020, foram impactados mais de 1,6 mil jovens, cerca de 70% pessoas pretas e pardas.

O projeto começou depois que Gabriel, um jovem morador do Jardim Pantanal, bairro da Zona Leste de São Paulo, perguntou a Diogo Bezerra, um dos cofundadores, se ele conhecia alguma escola ou curso de programação com uma linguagem mais simples. Bezerra entrou em contato com o amigo Tauan Matos, especialista em desenvolvimento de franquias de alto padrão, perguntando por um local desse tipo, de preferência na comunidade em que o jovem morava. Não havia nenhum.

“Começamos a conversar sobre como ajudar o Gabriel a ter essa oportunidade de estudar as tecnologias. Vindo de comunidade, de quebrada, sabemos que tem uma série de limitações, de falta de infraestrutura, conhecimento técnico. Uma série de camadas de pobreza que precisariam ser vencidas até mesmo antes dessa formação”, conta Matos. Ambos se juntaram com outros dois amigos da área da tecnologia, que ajudaram a desenhar uma jornada.

“Existiam outros jovens além do Gabriel também em outras comunidades, não só no Jardim Pantanal, que tinham um desejo de aprender tecnologia. Ali, foi quando basicamente nós criamos a Mais1Code, com essa missão de revolução tecnológica, de levar não só o ensino e o aprendizado de qualidade, mas a empregabilidade para jovens de periferia através das tecnologias”, explica. “Eu falo que é um grito, de como tem jovens talentosos dentro da quebrada.”

Jornada de aprendizado

Depois de se inscreverem, os jovens passam por uma entrevista, pela qual são selecionados.

A primeira fase é chamada de Lab Mindset. Nessa etapa, os estudantes participam de seis encontros, para aprender mais sobre o mundo da tecnologia e para onde pode levá-los. Ao mesmo tempo, fazem teste vocacional para descobrir quais são suas áreas de aptidão, como front-end, back-end, experiência do usuário (UX) – ou até mesmo vendendo e gerindo tecnologias.

Sócio-fundador, Tauan Matos (crédito: Erich Sacco)

A segunda fase é chamada de Universidade Mais1Code. Nela, os jovens começam, de fato, a aprender como escrever códigos. Um facilitador os acompanha até o fim dos 10 meses de formação.

Entre as duas fases, os estudantes são desafiados a pensar em soluções tecnológicas para a realidade deles. Por meio de grupos com cerca de cinco a 10 pessoas, de todas as regiões do Brasil, observam problemas locais que poderiam ser resolvidos por meio de soluções tecnológicas.

“Eles têm que chegar num consenso. Qual é o problema que todo mundo tem em comum aqui? Acesso à informação? Acesso a conteúdos tecnológicos?”, comenta Matos. “São jovens sem faculdade, sem muita referência, que criam soluções baseados na dor da região. Isso já é um motivador por si próprio.”

Na última etapa, antes do desenvolvimento do projeto final, os alunos desenvolvem habilidades socioemocionais, para entender como se posicionar no mercado de trabalho. Eles aprendem como se portar num processo seletivo, vencer a síndrome do impostor, a mexer no GitHub, Linkedin e tudo que envolve esse início de carreira, como um inglês básico voltado à programação.

Projetos

Na parte final, a solução tecnológica é apresentada perante uma banca de empresários, que podem investir na ideia ou contratá-los. O cofundador conta que os projetos se atêm à criação de Produtos Mínimos Viáveis (MVP, da sigla em inglês). São aplicações simples que demonstram a ideia por trás, mas que não chegam a ser colocadas em prática.

Em um projeto, por exemplo, jovens da Zona Sul da cidade de São Paulo criaram um aplicativo pelo qual o usuário tira foto de materiais que tenha disponível para reciclagem, indicando um horário em que estará disponível para retirada. Uma pessoa vai coletar no horário combinado, retirando os materiais e levando para o centro de coleta. Como uma forma de incentivo, livrarias dão cupom de desconto para os usuários que reciclam.

‘“Eles fizeram, na época, uma apresentação mostrando como isso pode diminuir o impacto na periferia quando chove, porque tem muito lixo jogado na rua, ou sujeira mesmo, porque as pessoas passam rasgando um saco de lixo pra coletar materiais recicláveis e vira uma bagunça. Quando você tem esses ecopontos pegando uma tonelada por mês, é menos uma tonelada que estaria nos bueiros”, conta.

Em outro projeto, os alunos criaram um aplicativo em que anexavam contatos e referências de pessoas que trabalhavam com carreto em algumas regiões específicas, “como se fosse um Uber do carreto”. “Começou com essa missão. E no fim eles entenderam que a dor não era só essa. Eles pensaram que a pessoa poderia entrar no aplicativo para ver, na sua região, onde ter acesso a um sapateiro, um carreto, um mecânico, e de um jeito muito mais simples e com menos taxas do que geralmente GetNinjas e outros têm”, diz.

Mota também destaca outro grupo de jovens, que quiseram incentivar a leitura através de um aplicativo. Apesar de existirem diversas plataformas, nenhuma tem “a cara da quebrada”. Por isso, criaram um aplicativo onde havia basicamente livros contendo histórias periféricas.

Formação

A escola gratuita se sustenta pode meio do investimento de empresas. Estas podem vir a contratar alunos, mas outras vezes se trata de uma prática de ESG, para fomento da educação tecnológica periférica. Coca-Cola, Ambev, Zé Delivery, Localweb e Sodexo são algumas empresas, por exemplo, que já apostaram no projeto, tirando outras marcas menores. Elas investem em grupos de 20 a 40 jovens.

De acordo com Mota, de 30% a 40% dos jovens que passam pela formação conseguem emprego. Mas há outros impactos também. Mota conta que, baseado na solução que criou na Mais1Code, um dos alunos da escola, chamado José, participou de um evento apresentando seu trabalho e ganhou três meses de estudos na Espanha.

“Basicamente nós somos uma fábrica de desenvolvedores juniores e o mercado quer sênior. Tem um processo até de desconstrução das empresas entenderem que antes de uma pessoa sênior, ele precisa de um júnior”, destaca. “O nosso sonho é que toda quebrada tenha ali um polo tecnológico. Não que o SEBRAE, o Senac e outras organizações já não estejam tentando fazer isso, mas são organizações para as quais, sinceramente, um jovem de periferia não brilha o olho. A Mais1Code, entre outros projetos que vêm de periferia, são iniciativas com os quais os jovens se identificam na hora”, diz.

Como se inscrever

Os novos cursos são anunciados mensalmente pelo site e redes sociais da Mais1Code.