A investigação aberta pelo Escritório do Representante do Comércio dos EUA (USTR, na sigla em inglês) contra o Brasil chamou a atenção por incluir a área de pagamentos eletrônicos. Embora o documento oficial não cite explicitamente, quem acompanha esse mercado há mais tempo aponta a suspensão do lançamento do WhatsApp Pay pelo Banco Central em junho de 2020, seis meses antes da chegada do Pix, como um dos episódios que motiva a investigação. As recentes decisões do STF em relação às redes sociais, incluindo o julgamento da constitucionalidade do artigo 19, são mencionadas no documento do governo norte-americano. Sobrou até para a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

No documento de abertura da investigação, a conselheira geral do USTR, Jennifer Thornton, diz que o Brasil “parece adotar uma série de práticas desleais em relação aos serviços de pagamento eletrônico, incluindo, mas não se limitando a, favorecer os serviços de pagamento eletrônico desenvolvidos pelo próprio governo. Apesar de não mencionar o Pix, é óbvio que esse trecho se refere ao serviço de pagamentos instantâneos criado e mantido pelo Banco Central.

Em junho de 2020, o Facebook anunciou o lançamento de um sistema de pagamento dentro do WhatsApp no Brasil, chamado então oficialmente de Facebook Pay (mas apelidado por aqui de WhatsApp Pay). Entre os parceiros estavam Visa, Mastercard, Cielo, Banco do Brasil, Nubank e Sicredi. Uma semana depois do anúncio, o Banco Central ordenou a suspensão do Facebook Pay, com o argumento de que precisava analisar seu impacto no ambiente competitivo brasileiro antes de autorizá-lo. No mesmo dia, o Cade também suspendeu o acordo entre Facebook e Cielo para o processamento dos pagamentos.

Cinco meses mais tarde, em novembro de 2020, nasceu o Pix, o serviço de pagamentos instantâneos criado pelo Banco Central. Seu lançamento já estava previsto para aquele momento. O projeto vinha sendo desenvolvido há anos, e seu cronograma era devidamente divulgado ao público – veja essa matéria de outubro de 2019 do Mobile Time na qual se analisava o impacto do Pix e se falava que seu lançamento aconteceria um ano depois.

O WhatsApp Pay só foi liberado pelo BC em março de 2021, quando o Pix já era um sucesso estrondoso. E, mesmo assim, foi autorizado de maneira restrita, inicialmente apenas para transferências entre usuários, não para compras.

As empresas norte-americanas que mais sofreram com o sucesso do Pix foram as bandeiras de cartão (Mastercard, Visa e American Express) e a Meta, dona do WhatsApp, que perdeu a vantagem de sair na frente do Pix e aproveitar sua enorme base de usuários no Brasil.

Portanto, é bem provável que a suspensão do WhatsApp Pay seja uma das acusações a serem feitas pela USTR como suposta prática anticompetitiva do Brasil em pagamentos eletrônicos.

Fonte do governo federal ouvida por Mobile Time alerta também que por trás dessa acusação possam estar o interesse de privatização do Pix, que hoje é gerido pelo BC, e a preocupação com a criação de um sistema de pagamentos alternativo ao Dólar no âmbito do BRICS.

Artigo 19 e redes sociais

O USTR critica também a decisão do STF de decretar parcialmente inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet, responsabilizando as redes sociais por conteúdo ilegal publicado por seus usuários. Para o USTR, isso “pode desencadear a remoção preventiva de conteúdo e impor restrições a uma ampla gama de discursos, além de aumentar significativamente o risco de prejuízos econômicos para as empresas norte-americanas de redes sociais.”

As ordens de remoção de conteúdos e de perfis de usuários por parte da Justiça brasileira também são citadas no documento de abertura da investigação.

A compreensão de publicidade digital dentro de um conceito amplo de comércio digital explicaria a mistura dos temas pagamentos eletrônicos e redes sociais no documento, explica a fonte do governo federal.

LGPD na mira do USTR

Nem a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) escapou da mira dos EUA. Thornton reclama das restrições para transferência de dados pessoais para fora do Brasil: “Essas restrições podem impedir que uma empresa processe dados com segurança ou ofereça serviços a partir de servidores localizados nos Estados Unidos.”

A Meta foi procurada por Mobile Time, mas preferiu não se posicionar sobre a investigação do USTR neste momento.

Análise

Na prática, algumas das mais importantes iniciativas no ambiente digital tomadas pelo Brasil nos últimos tempos, passando por pelo menos quatro governos (Dilma, Temer, Bolsonaro e Lula) e envolvendo os três poderes (Executivo, Legislativa e Judiciário), parecem incomodar os EUA e “ameaçar a competitividade” de suas empresas.

“Há evidências de que esses atos, políticas e práticas podem prejudicar a competitividade de empresas norte-americanas que atuam no comércio digital e em serviços de pagamento eletrônico, por exemplo, ao aumentar riscos ou custos para essas empresas, restringir sua capacidade de prestar serviços ou conduzir práticas comerciais normais, reduzir sua receita e o retorno sobre seus investimentos, impor maiores encargos regulatórios e custos de conformidade, ou criar vantagens para concorrentes brasileiros locais”, diz o documento da USTR.

Não por coincidência, as iniciativas que incomodam os EUA são justamente algumas daquelas que mais reforçam a soberania do Brasil no ambiente digital.

A ilustração acima foi produzida por Mobile Time com IA

 

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