Vivemos a era da instantaneidade. Em um estalar de dedos, mensagens cruzam o planeta, da tela de um smartphone para outro. Jovens em cidades diferentes se enfrentam em games eletrônicos nos quais qualquer pequeno atraso na comunicação de dados pode significar a sua derrota. Operadoras celulares começam a implementar redes de quinta geração (5G) com a promessa de velocidades na casa de Gigabytes por segundo e uma latência abaixo de 1 milissegundo. Enquanto isso, a transferência de dinheiro entre contas de bancos diferentes está longe de ser instantânea. Dependendo do dia da semana ou do horário, pode levar mais de 24 horas. Além de demorado, é difícil: o usuário precisa saber número de identificação do banco do destinatário, agência, conta e CPF. E ainda por cima custa caro: a tarifa para realizar um TED gira em torno de R$ 10. Mas isso está prestes a mudar com o desenvolvimento pelo Banco Central de uma plataforma nacional de pagamentos instantâneos. Com lançamento da primeira fase previsto para novembro de 2020, o assunto mobiliza todos os atores desse ecossistema: bancos, redes de adquirência, bandeiras de cartões, fintechs, redes varejistas etc. O consenso é de que o maior beneficiário da novidade será o consumidor. Mas e quanto às empresas? Quem ganha e quem perde com a entrada dos pagamentos na era da instantaneidade?

O objetivo do BC é simplificar e agilizar a transferência eletrônica de valores entre contas. Os pagamentos instantâneos poderão ser feitos através de aplicativos no celular, por exemplo. Não será mais necessário saber os números da agência e da conta do destinatário, nem mesmo o banco ou o CPF. Bastará ter a pessoa em sua agenda de contatos no smartphone. Isso porque cada conta bancária ou de pagamentos poderá ser vinculada ao email ou ao número telefônico do seu dono. Outra maneira de enviar dinheiro será escaneando um QR code com os dados da conta do recebedor, que pode ser uma pessoa, um estabelecimento comercial ou mesmo um órgão governamental.

Será um serviço totalmente interoperável, sendo possível mandar dinheiro de contas digitais de fintechs para contas de bancos tradicionais e vice-versa. As transferências acontecerão instantaneamente, em qualquer dia da semana ou hora do dia.

O gerenciamento da plataforma de liquidação dos pagamentos instantâneos assim como da base nacional de endereçamento ficará sob a responsabilidade do BC, para garantir a neutralidade do projeto. Será cobrada uma tarifa por transação com o propósito de arcar com os custos da operação e manutenção do serviço. Não foi definido o valor, mas a expectativa é que seja baixo.

Para desenhar a arquitetura da plataforma e definir suas especificações, o BC instituiu em março deste ano o Fórum de Pagamentos Instantâneos (Fórum PI), do qual participam diversas empresas do setor de pagamentos. O processo é elogiado pelos participantes por ser democrático, conferindo voz a todos que quiserem se manifestar sobre quaisquer aspectos do projeto.

A partir das reuniões do Fórum PI, várias decisões já foram tomadas, como a definição dos papéis dos diferentes atores dentro do ecossistema de pagamentos instantâneos; o padrão de QR code que será utilizado; as chaves de endereçamento etc. Por outro lado, ainda falta bater o martelo em relação a outros pontos importantes, como certos fluxos de processos e especificações de segurança e comunicação.

O cronograma para a entrada em operação da plataforma foi dividido em quatro fases. A primeira, marcada para novembro de 2020, prevê o lançamento dos pagamentos instantâneos por QR code com os participantes que estiverem conectados diretamente à plataforma.

Impacto

Uma das expectativas do BC é de que os pagamentos instantâneos substituam boa parte das transações em espécie. Atualmente, mais da metade das transações feitas no Brasil ainda acontecem com dinheiro em papel, principalmente aquelas de baixo valor. Seu uso traz consigo uma série de problemas: alto custo operacional para emissão, transporte e armazenamento; riscos de segurança; e facilidade para lavagem de dinheiro.

“Vemos os pagamentos instantâneos mais como uma oportunidade do que como uma ameaça”, diz Guilherme Esquivel, da Mastercard

“A indústria de meios de pagamento eletrônicos tem participação perto de 40% no consumo doméstico do Brasil. Há outros 60% para avançarmos. Qualquer iniciativa que ajude a acelerar esse processo de conversão é bem-vinda. Por isso, vemos os pagamentos instantâneos mais como uma oportunidade do que como uma ameaça”, declara Guilherme Esquivel, diretor de pagamentos digitais e labs da Mastercard no Brasil.

Haverá também um impacto sobre as próprias transações eletrônicas. A partir do momento em que o dinheiro flua diretamente de uma conta para outra, reduz-se a necessidade de intermediários nesse processo.

“Perde quem é transferidor de dinheiro e ganha quem controla a origem e o destino do dinheiro”, diz Carlos Netto, da Matera

“Perde quem é transferidor de dinheiro e ganha quem controla a origem e o destino do dinheiro”, resume Carlos Netto, CEO da Matera, empresa que desenvolve softwares para bancos. “Os pagamentos instantâneos acabam com os intermediários, que hoje ganham muito dinheiro. O tamanho e a complexidade da indústria que existe só para fazer o dinheiro ir do ponto A para o ponto B é descomunal. Isso tira produtividade da sociedade”, argumenta Netto.

As redes de adquirência, portanto, serão afetadas. Afinal, lojistas poderão prescindir das máquinas de POS para receberem pagamentos instantâneos, cujo custo será mais baixo. Para os comerciantes, haverá ainda o benefício da redução do chargeback (estorno) e das tentativas de fraude e de autofraude, conforme explica Vitor Magnani, presidente da Associação Brasileira Online to Offline (ABO2O) e diretor da Confederação Nacional de Serviços (CNS):Quando se trata de chargeback, na medida em que todas as transações provenientes do ecossistema de pagamentos instantâneos serão irreversíveis, este entrará em extinção. No entanto, percebe-se que não acontecerá necessariamente a resolução do problema, mas sim a mudança na forma de questionar/contestar uma transação, que acontecerá por mero acordo entre as partes envolvidas, assim como ocorre atualmente nas transferências por TED ou DOC”.

Nos últimos meses tem havido intensa movimentação no mercado brasileiro de redes de adquirência, com redução de taxas e lançamentos de novos serviços, como pagamento por QR code, criação de carteiras digitais e oferta de softwares de gestão embarcados em máquinas com sistema operacional Android. Para alguns especialistas, são fruto da agressiva competição nesse segmento, que obriga os players a buscarem diferenciação, mas também uma preparação para minimizar as consequências dos pagamentos instantâneos.

“A alegada desintermediação será acomodada em outros mecanismos que os credenciadores já estão buscando quando os pagamentos instantâneos chegarem”, diz Percival Jatobá, da Visa Foto: Marcelo Soubhia

“A alegada desintermediação será acomodada em outros mecanismos que os credenciadores já estão buscando quando os pagamentos instantâneos chegarem. A indústria de adquirência e de credenciadores é uma das mais criativas e inovadoras do mercado brasileiro”, afirma o vice-presidente de produtos, soluções e inovações da Visa no Brasil, Percival Jatobá. “Em uma indústria gigante como a nossa, ninguém será desintermediado porque está dormindo no ponto. Está todo mundo trabalhando para participar o mais ativamente possível desse processo”, complementa.

Do lado das redes de adquirência, o economista chefe da Stone, Vinícius Carrasco, fala com otimismo sobre os pagamentos instantâneos: “Será uma enorme oportunidade para empresas de pagamentos, especialmente aquelas de tecnologia. Em última instância, o papel de um empresa de adquirência é permitir que estabelecimentos comerciais consigam receber pagamentos associados a suas vendas. Isso para quaisquer possíveis formas de pagamento. Pagamentos instantâneos serão mais uma forma de o varejista receber, assim como são outras formas o recebimento por meio de cartão de débito e crédito. O arranjo de pagamentos instantâneos expande o mercado endereçável de empresas de pagamentos enormemente. Em particular, para a Stone, o arranjo é complementar à nossa iniciativa de provisão de serviços transacionais de contas a nossos clientes.”

Fintechs

Fintechs que oferecem contas de pagamento, por sua vez, estão entre as maiores beneficiadas. Hoje muitas delas disponibilizam pagamentos instantâneos que funcionam somente entre seus próprios clientes, em arranjos fechados de pagamento. Na plataforma de pagamentos instantâneos, fintechs e bancos tradicionais serão tratados como iguais: todos serão “prestadores de serviços de pagamentos”, ou PSPs. E o BC vai obrigar todos os bancos a se conectarem à plataforma. Assim, os clientes de uma fintech conseguirão transferir dinheiro instantaneamente para pessoas com contas em bancos tradicionais e vice-versa.

“Não prevemos disrupção com todo mundo usando pagamentos instantâneos no dia seguinte ao lançamento”, diz Gueitiro Genso, CEO da PicPay. Foto: Paulo Vitale

Uma dessas fintechs pioneiras no Brasil na área de pagamentos é a PicPay. Em sete anos de operação, ela acumula 33 milhões de transações e soma atualmente 12 milhões de usuários cadastrados, dos quais 5 milhões realizaram pelo menos uma transação em 2019. “Em 2012, os fundadores da PicPay foram visionários porque enxergaram esse movimento de pagamentos instantâneos 24/7 e de uso do QR code. Eles sabiam que o mobile seria a ferramenta que levaria tais soluções para os usuários”, relata Gueitiro Genso, CEO da PicPay.

Outro segmento de fintechs que vai colher os frutos dos pagamentos instantâneos é o de remessas internacionais. Se conseguirem se conectar a bancos de outros países onde também há pagamentos instantâneos, será possível realizar transferências para o exterior em poucos segundos. É o caso da brasileira Remessa Online, que já está integrada com bancos no Reino Unido para pagamentos instantâneos, enquanto no Brasil depende da janela do TED. “As agendas de pagamentos instantâneos e de open banking são muito importantes para nós”, comenta Alexandre Liuzzi, cofundador e CSO da Remessa Online.

Recargas, impostos e transações de alto valor

“Perderá quem resistir à mudança, abraçar o passado e se recusar a mudar”, alerta Livia Chanes, diretora do Iti, do Itaú Unibanco

É esperado um impacto em diversos serviços de pagamentos que hoje dependem de intermediários, como recarga de pré-pago, recarga de cartão de transporte e pagamentos de impostos e taxas municipais e estaduais. Em todos esses casos, as informações necessárias para o pagamento poderão ser incluídas em um QR code para o pagamento pelo consumidor, enviando o dinheiro diretamente para a conta do recebedor, seja uma operadora de telefonia, uma concessionária de transporte público ou uma prefeitura, por exemplo.   

E até mesmo transações de alto valor poderão sofrer consequências, como a compra de carros ou imóveis. No roadmap da plataforma do Banco Central consta o chamado “pagamento por documento”, previsto para a quarta e última fase da iniciativa, ainda sem data definida. “A ideia é que a transferência de propriedade do ativo possa ser assegurada por meio da ordem de pagamento, diminuindo o risco atualmente existente nesse tipo da transação. A Suécia está atualmente desenvolvendo essa funcionalidade. Acreditamos que possamos introduzi-la no nosso ecossistema num futuro próximo”, explica Breno Lobo, assessor sênior do Departamento de Operações Bancárias e de Sistema de Pagamentos do Banco Central. Ou seja, o documento de transferência de um carro ou imóvel seria atrelado ao pagamento realizado através da plataforma de pagamentos instantâneos. Assim, o vendedor receberá o dinheiro ao mesmo tempo em que o comprador receberá o documento de transferência do ativo. As especificações de como isso vai funcionar na prática ainda precisam ser definidas pelo Fórum PI.

Transformação gradual

“A proposta de pagamentos instantâneos atual ainda não desmistifica a relação complexa do cenário concorrencial do país”, diz Vitor Magnani, da ABO2O e CNS

O impacto dos pagamentos instantâneos será profundo, mas não vai acontecer da noite para o dia. Primeiro, ainda há muita coisa a ser resolvida no que diz respeito às especificações, principalmente em torno da segurança. E mesmo depois de lançada, a plataforma do BC, a transformação do mercado será gradual, apostam as fontes. “Estudamos muito o comportamento de carteiras digitais pelo mundo e acreditamos que não acontecerá no Brasil o que houve na China, onde ocorreu uma transição direta do dinheiro para o mobile. Isso porque no Brasil temos os cartões de plástico e as redes de adquirência. Acreditamos que a longo do tempo essa nova tecnologia de pagamentos instantâneos vai preencher um pedaço do mercado. Não prevemos disrupção com todo mundo usando pagamentos instantâneos no dia seguinte ao lançamento”, avalia Genso, da PicPay.

Por sua vez, Magnani, da ABO2O e CNS, descarta uma desconcentração do mercado decorrente da iniciativa. “A proposta de pagamentos instantâneos atual ainda não desmistifica a relação complexa do cenário concorrencial do País, tampouco aumentará de forma significativa o acesso aos serviços financeiros da grande parcela da população desbancarizada”, avalia.

Contudo, ficar de braços cruzados pode ser arriscado. Várias fontes alertam que as maiores perdedoras serão as empresas que demorarem a se adaptar. “Perderá quem resistir à mudança, abraçar o passado e se recusar a mudar”, alerta Livia Chanes, diretora do Iti, do Itaú Unibanco. Esquivel, da Mastercard, concorda: “O desafio será maior para quem pagar para ver. Este perderá uma janela de oportunidade. Um cenário com novos modelos gera oportunidade para quem for early adopter, ou seja, aquele que ocupar o espaço primeiro.”

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Mobile Time promoverá no dia 8 de outubro, no WTC, em São Paulo, a segunda edição do Mobishop, seminário sobre m-payment, m-banking e m-commerce. Pagamentos instantâneos, bancos digitais, super-apps e criptomoedas serão alguns dos temas abordados. Entre os palestrantes há executivos de instituições e empresas como Banco Central, Banco do Brasil, Bradesco (next), Itaú Unibanco, BS2, Banco Inter, Banco Original, Mastercard, Magazine Luiza, Mercado Pago, Rappi, Delivery Center, Sumup, Thales Gemalto, Syntonic, DoCoMo Digital, Pundix, Opinion Box, dentre outros. A programação completa e mais informações estão disponíveis em www.mobishop.com.br, ou pelo telefone 11-3138-4619, ou pelo email [email protected]