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José Gomes Temporão, pesquisador e ex-ministro da Saúde

Em 2009, o mundo enfrentou outra pandemia de um vírus da gripe, o Influenza A (H1N1). As ferramentas tecnológicas da época eram muito diferentes, assim como a economia brasileira. Para abordar as diferenças e semelhanças sobre como o Brasil enfrentou aquele desafio e como encara agora o Covid-19, Mobile Time conversou com José Gomes Temporão, que era o ministro da Saúde na época. Ele é pesquisador associado da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) e membro do Cancer Control Advisory Committee da OMS e da Academia Nacional de Medicina.

Mobile TimeComo foi o combate à Influenza A (H1N1) em 2009, quando comparado ao coronavírus em 2020?

José Gomes Temporão: Temos algumas semelhanças e temas importantes em comparação a 2009. Influenza é uma gripe sazonal. Era um subtipo de vírus que circulava em suínos; ele saltou de espécie e passou a infectar humanos. A OMS declarou pandemia e tivemos de nos preparar. Na época, nós tínhamos algumas vantagens, como medicamentos para combater a doença. Em menos de nove meses foi possível uma vacina em 2009 com o Instituto Butantã de São Paulo, e em 2010 conseguimos vacinar 100 milhões de pessoas. Hoje, não temos nenhum medicamento ainda, apenas estudos iniciais, e a vacina deve sair em um ano e meio. Mas conseguimos mapear o genoma da doença em 48 horas. Só o Brasil e a França conseguiram fazer isso, algo que é importante, pois ajuda a entender a doença e possíveis formas de tratamentos e de preparo.

E teve uma mudança brutal nas comunicações. Em 2009, não tinha WhatsApp. Esse é um fator a favor – para massificar e agilizar as comunicações –, mas também tem o outro lado da moeda. Circulam notícias falsas, curas milagrosas e arquivos de áudio que trazem desinformação.

Mobile Time – O senhor lembra quais eram as tecnologias e meios mais usados para disseminar informação? SMS, site, campanha na mídia?

Temporão: Nós usamos muito rádio, imprensa formal (TV e escrita), usamos as operadoras para envio de SMS à população. Me lembro que montamos uma força tarefa para ler e responder dúvidas nas redes sociais, era uma área dedicada para conversar com os cidadãos – Facebook estava no começo, o Orkut era mais forte na época. E usamos o telemarketing. Nós aumentamos nossa ouvidoria para atender a população. Hoje as ferramentas são mais rápidas.

Na ciência, houve alguma tecnologia que contribuiu mais para combater a H1N1?

Como era um vírus da Influenza, já existiam soluções. Um exemplo é que essa vacina que vamos tomar no dia 23 de março, o H1N1 está nela. Naquela época, a vacina do H1N1 saiu em nove meses e tínhamos dois medicamentos para o começo do tratamento. Hoje, nós ainda não temos. O coronavírus é de outra família e vamos demorar bastante tempo para ter a vacina. Por outro lado, nós avançamos muito na ciência e na genética e no sequenciamento do genoma. Isso é muito importante para estudar a doença e investir. E esperamos ter um conjunto de medicamentos nas próximas semanas, uma vez que as comunidades estão mais próximas com uma série de redes colaborativas em pesquisas. Já o tratamento hospitalar não difere do que temos hoje (UIT, ventilação mecânica etc).

Faltou algo naquela época? Mais apoio das empresas que produzem os medicamentos ou mais investimento do governo?

A campanha foi exatamente a mesma. As medidas de prevenção não mudaram de lá para cá (alertas à população para lavar as mãos e evitar a aproximação com pessoas). Houve uma grande disseminação de medidas programáticas, mas talvez em escala menor do que acontece hoje. O vírus atual tem um grau de transmissibilidade e letalidade muito alta, om torno de 3%, enquanto que a letalidade das Influenzas é de 0,1 por 100. Ou seja, morre 0,1 pessoa para cada 100. No caso do coronavírus é de três óbitos para cada 100 pessoas. Ele parece ser mais agressivo que a Influenza.

E agora, como o senhor vê o uso de tecnologias de mensageria e mesmo o avanço da telessaúde no combate à Covid-19?

Essas tecnologias são fundamentais cada vez mais. Em teleconsulta, o Conselho Federal de Medicina (CFM) abriu algumas exceções, mas ainda parece tímido em relação à essa realidade. Eu entendo que o médico sempre usou teleconsulta de algum modo, assim como passar informações via ligação telefônica. É algo antigo. Meu pediatra fazia com meus pais. Inclusive, o documento publicado pela Academia Nacional de Medicina tem a adoção de estratégia de serviços a distância. Isso pode ajudar muito que pacientes assintomáticos ou com poucos sintomas busquem
desnecessariamente os serviços de saúde.

Do ponto de vista econômico e social, quais são as diferenças entre esses dois momentos?

Os aspectos econômicos e sociais eram distintos em 2009. A economia não era boa (acabara de entrar na crise econômica de 2008, dos subprimes). Mas tínhamos total apoio do governo e todos os recursos em mãos, como leitos e respiradores, além de muito mais mobilidade para gerenciar gastos. E hoje, tanto no econômico e no social, não tem essa mesma coesão da presidência. Temos 11,9 milhões de desempregados, por exemplo. E com a lei de 2016 (teto de gastos) que restringe os gastos sociais, nós perdemos mais de R$ 20 bilhões na saúde. As ferramentas econômicas e sociais que o governo dispõe hoje são bem mais frágeis do que em 2009. Estamos em um cenário bem mais difícil.

A atual administração está tomando as decisões corretas de saúde coletiva?

O ministro Mandetta e sua equipe têm tido um comportamento competente até o momento. O problema está na presidência. Em 2009, tínhamos apoio total. Hoje, o presidente (Bolsonaro) segue fazendo comentários desnecessários. Eu tenho certeza de que o ministro Mandetta tem explicado direto a ele. Mas o presidente sai dali e fala outra coisa. Parece que o governo não está coeso.

Houve algum alarmismo exagerado?

Não creio. Em 2009, aconteceu um fenômeno parecido. Há temor natural, a pessoa se questiona: o que acontecerá com a família, meus pais, filhos? É papel do profissional de comunicação explicar à sociedade. O Brasil está em um estágio intermediário, se comparado com os países da Europa (Itália, França, Alemanha e Inglaterra). Lá as pessoas estão realmente proibidas de sair de casa. Portanto, não acho exagerado, pois a situação é crítica. É uma doença nova a qual não temos anticorpos, e você pode ter exposição de muitas pessoas em um período muito curto de tempo. Acho que o que foi dito pelo Ministério (da Saúde) até agora está correto.

Há algo que poderia ser feito hoje em saúde coletiva? Algo que empresas e governo ainda não fizeram?

Um ponto que é um grande desafio é garantir a estratégia de distanciamento social em comunidades mais pobres. Pessoas que compartilham cômodos de menos de 20 m² com seis a sete pessoas, pessoas desempregadas ou em situação de risco. Será preciso dar apoio financeiro às famílias mais vulneráveis. Sim, nós teremos que ter mais leitos, mais respiradores e mais dinheiro para a saúde. Mas também apoiar essa população, que aproximadamente está em 60 milhões de pessoas hoje.

Qual a sua opinião sobre as medidas tomadas até agora para ajudar na prevenção ao Covil-19, especialmente no que diz respeito ao uso de tecnologia? Sente falta de algum outro tipo de ação envolvendo aplicativos ou SMS em telefonia celular?

Nessa questão nunca há exagero. Não creio que falte algo. Estamos usando praticamente tudo que existe. No entanto, há um receio da capacidade dos serviços de saúde enfrentarem essa situação (que pode ser atenuado pela tecnologia). As pessoas que estão na frente de combate também podem adoecer. Por exemplo: estamos vendo pessoas com sintomas vagos ou sem sintomas, indo para o sistema de saúde, elas estão saindo de casa, se expondo, sem necessidade alguma. Outro problema: circula nas redes sociais um medicamento sobre o uso de remédio da malária, hoje usado no tratamento de doenças reumatológicas e autoimunes que serviria para combater o Covid-19. Existe um estudo francês ainda preliminar, mas as pessoas estão comprando e estocando esse remédio. E é um medicamento que pode ter efeitos colaterais. Não posso correr para a farmácia e comprar um remédio que não tem nenhuma comprovação científica contra uma doença. Como lutar contra isso? Mais informações de qualidade. Portanto, o grande desafio hoje é o da comunicação, ao lado da medicina.

Qual deve ser o papel do cidadão nesta crise?

Ele é central. Se as pessoas não seguirem as recomendações científicas de distanciamento social, isso trará o caos. O sistema de saúde não consegue atender a todos. Foi o que aconteceu na Itália. O sistema de saúde não conseguiu atender a todos, e o governo italiano precisou tomar medidas draconianas. As pessoas têm que compreender que se cada um de nós atuar apropriadamente, lavar às mãos e seguir as regras de distanciamento social, nós vamos sair mais rápido dessa crise.

O Covid-19 parece sobreviver bastante tempo fora de um hospedeiro, sobre superfícies diversas. Há risco de contaminação através do uso do telefone celular, seja pelo compartilhamento do mesmo com uma pessoa infectada, seja por ele ter tido contato com uma superfície contaminada, como uma mesa, por exemplo?

Qualquer superfície onde o vírus está presente… Qualquer espaço onde alguém espirrou, tossiu, ele pode sobreviver por vários dias. Quando você encosta na superfície que contém gotículas com o vírus, e leva a mão à boca, daí sim transmite. O Covid-19 não contamina ninguem pela pele, mas pelas vias aéreas. Então você tem que tocar a mão contaminada no rosto para contrair a doença. Por isso é importante a lavagem das mãos com água e sabão, mas também tem que ter cuidado em higienizar o celular.

[Texto atualizado às 18h10 do sábado, 21]