Mas afinal, alguém (ainda) entende o que é neutralidade de rede?  O conceito em si dominou as discussões iniciais do Projeto de Lei do Marco Civil (Lei 12.965/14), mas a ideia de neutralidade é bem mais antiga.

Infelizmente, no Brasil, assim como em outros países em desenvolvimento, a discussão pública não é mais sobre neutralidade, mas sobre acesso gratuito à Internet. E que nos desculpem os trovadores e os arautos do apocalipse, mas neutralidade e acesso gratuito não são a mesma coisa. Longe disto.

Neutralidade de rede é um conceito cunhado pelo professor de Harvard Tim Wu, que escreveu um livro sobre o tema em 2010 (The Master Switch), onde explicava que com a evolução das redes de comunicação e a convergência dos serviços de comunicação – voz, dados, mensagens, músicas, vídeos e outros – para o ambiente IP haveria necessidade de estabelecermos regras para o tratamento igualitário do transporte dos dados.

Em poucas palavras, teríamos que determinar a democracia no transporte de informações. Se alguém envia um dado – qualquer dado – por uma rede de comunicações baseada em IP, este dado deve caminhar  com a mesma liberdade de qualquer outro tipo de dado que também utilize esta rede.

Mal comparando, se construímos uma estrada, ela deve ser igual pra todos – ter asfalto, faixas nas laterais e faixas intermitentes no meio. Se alguém vai passar com uma Brasília Amarela ou um Porsche a estrada ainda é a mesma para ambos, sem discriminação, não interessando o valor ou a velocidade de ambos os veículos.

O conceito de neutralidade é especialmente incômodo para os detentores de redes de comunicações – ou as estradas – porque os obriga a trafegar caminhões (vídeos e músicas) e carros de passeio (emails e mensagens) do mesmo modo, sendo obrigados a investir  na infraestrutura de rede para acompanhar o aumento do tráfego, já que temos a bagatela de 85.6 milhões de domicílios com acesso à rede no País e cerca de 260 milhões de conexões móveis através das operadoras que atuam por aqui.

É muita gente. Que chegou muito rápido. O acesso à Internet avança mais rápido que outros meios de comunicação históricos, como foram os jornais, as rádios e a TV. Como o recurso em si – a rede – é um bem escasso e caro de construir, especialmente no Brasil em que o apetite do Governo por impostos é famoso, os donos das redes reclamam dos altos investimentos que têm de ser feitos para entregar um serviço que precisa ter qualidade. Ninguém quer uma estrada esburacada. E foi justamente por isso que a Anatel começou a medir a qualidade das conexões à Internet ainda em 2014, para conseguir cobrar melhorias. E ainda tem a questão da concorrência: há uma disputa constante entre operadores de redes fixas e móveis para entregar mais por menos. É uma briga para ver quem fica sem respirar por mais tempo no fundo do poço, tentando angariar o máximo de usuários para as suas redes, que seriam o oxigênio a ser respirado no futuro.

Com tanta concorrência, o Brasil bate recordes de acesso à rede e se tornou o 5o maior país a povoar a Internet já em 2013. Só perdemos para chineses, indianos, americanos e russos. Ficamos famosos também por sermos os mais engajados. Invadimos e dominamos serviços do Google, Facebook e Twitter, que hoje nos disputam  como se fôssemos pedras preciosas, com promoções e planos cada vez mais agressivos em conjunto com os donos das redes.

Nesta missão para ver quem se afoga primeiro ou se torna o Aquaman, surgiram os planos de "zero rating", que nada mais são do que aquilo que o brasileiro mais adora: petisco grátis!

Em tais modelos "freemium" de acesso, basicamente temos alguma empresa abrindo mão de sua remuneração para o acesso à Internet ou repassando a conta para outra empresa, que libera o acesso a seus sites, aplicativos móveis ou para toda a Internet mesmo, porque, afinal, tem empresa que gosta de bancar Noel  (e até hoje ainda não se descobriu porque coincidentemente todas as empresas que o fizeram tinham o vermelho em suas cores. #Noelfeelings).

Pois bem, toda esta estória tem um porém. Desconfiados de que o grátis é bom demais pra ser verdade, órgãos de defesa do consumidor, ativistas da Internet e outros que simplesmente querem meter a colher nesta grande e escaldada sopa, defendem que o "zero rating" seria uma infração à neutralidade de rede, já que apenas empresas com capital (muito capital), poderiam pagar para que seus usuários acessassem a Internet gratuitamente. E as pequenas empresas e start-ups seriam prejudicadas, fadadas a um mundo sombrio aonde nunca conseguiriam competir com os grandes players da rede.

Após os esforços do Facebook para divulgar seu projeto Internet.org – que por acaso prevê o acesso "zero rating" à Internet em regiões pobres do globo – a discussão degringolou de vez, com países emergentes como Brasil, Índia e Indonésia discutindo conceitos de neutralidade de rede como se isto se resumisse às questões de "zero rating".  O Chile foi ainda mais longe e proibiu a prática, alegando sua ilegalidade.

Pois é. Mas neutralidade não é "zero rating". Ficamos míopes na discussão, ofuscados por uma questão pontual, sem lembrar dos conceitos básicos.

Deste modo, e para iluminar a todos os leitores, propomos voltar ao básico. Back to the basics everyone.

Em primeiro lugar: "zero rating" sempre existiu e sempre existirá. Quando uma empresa fornece acesso à Internet gratuitamente a seus funcionários isto é ofensivo à neutralidade de rede? Quando um pai compra créditos pré-pagos para seu filho isto é ofensivo? Quando éramos inundados de CDs da AOL para navegar 1000 horas de graça isso era ofensivo? Até era, mas isso é outra discussão (pra quem não se lembra, a estória é bem contada aqui http://info.abril.com.br/noticias/blogs/ctrlz/blog-info-ctrlz/relembre-a-historia-da-aol-no-brasil/).

A questão é que sempre há a possibilidade de sermos alvo de ações promocionais ou benesses por parte de empresas que queiram divulgar seus serviços e se promover. Ainda na analogia da estrada, seria como se duas concessionárias de rodovias concorrentes tentassem ganhar mais usuários liberando o pedágio durante alguns dias na semana. A estrada concorrente que não promoveu o "pedágio zero" não deixaria de existir, sendo utilizada normalmente por todos que não se comoverem pela promoção (CCR NovaDutra e Ecovias, #ficadica). Do mesmo modo, o acesso à Internet de forma paga e neutra não deixa de existir.

E como o "zero rating" prevê limites de velocidade e tempo, se trata muito mais de um petisco do que o bolo em si. É bom para provar, mas não é suficiente. Justamente por isto se tornou a estratégia "freemium" dos grandes players para propagandear seus serviços, através do aceno de suas qualidades de forma limitada.

Em segundo lugar, nos parece que a questão é muito mais de isonomia de condições do que de concorrência desleal entre grandes e pequenos players de Internet. Isto porque não há publicidade de como as empresas devem contratar serviços do tipo para oferecer a seus usuários, nem quais são seus valores. Havendo pleno conhecimento destas condições, ou melhor ainda, havendo o estabelecimento de todo um plano de negócios dos detentores das redes para oferecer a possibilidade de qualquer empresa comprar megas, gigas ou teras de dados para oferecer a seus clientes, quaisquer acusações de discriminação ou  ausência de tratamento neutro cairia por terra. Ainda é possível chegarmos neste estágio, basta oferecer condições a todas as empresas que o queiram, não apenas a grandes players.

Talvez com a própria competição que temos atualmente no mercado, se descubra que isto é um bom negócio. Se alguém nos paga o pedágio para caminharmos por uma bela estrada, ensolarada e asfaltada para todos, por que não?