Na última sexta-feira, 22, o Ministério da Saúde decretou oficialmente o fim do estado de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) com a publicação de decreto em edição extra do Diário Oficial da União. A portaria entra em vigor em menos de 30 dias e o ato pode gerar um vácuo regulatório no que tange à telemedicina, uma vez que dentro do escopo da Espin está a lei provisória que a regulamenta em caráter emergencial (Lei n.º 13.989/2020).

Por isso, o Congresso Nacional se mexe para votar rapidamente o Projeto de Lei º 1.998, de 2020, de autoria de Adriana Ventura (Novo-SP), que regulamenta em definitivo a telessaúde, uma iniciativa inédita no País. Enquanto a telemedicina se restringe à medicina remota, a telessaúde abrange várias outras áreas da saúde, como fisioterapia, psicologia e nutrição.

A deputada acredita que o texto final está “redondo”. “Todos os problemas foram superados. Nada como o tempo, a necessidade e a prática para superarmos os problemas. Quem tinha resistência sabe que não adianta lutar contra. A telessaúde está aí”, diz.

Adriana Ventura

A deputada Adriana Ventura (Novo-SP);. Foto: divulgação

Além do conceito de telessaúde, o projeto de lei traz vários outros avanços. Seu texto deixa claro que a primeira consulta pode ser virtual e que o acesso aos serviços de telessaúde não poderá ser limitado em razão da localidade do paciente. Ou seja, paciente e médico podem estar em cidades diferentes. Essas são questões que historicamente geraram polêmica no meio médico quando se discutia a possibilidade de regulamentação da telessaúde.

Antes, alguns deputados da bancada da saúde e o Conselho Federal de Medicina (CFM) queriam estipular que a primeira consulta fosse presencial e que o atendimento virtual deveria acontecer somente com o médico e o paciente localizados na mesma cidade. Uma herança de uma tentativa de resolução apresentada pelo CFM em 2018 que delimitava esses pontos e que foram duramente criticados pela classe na época. No fim, a resolução foi publicada e revogada cerca de um mês após sua publicação. A resistência a esse ponto parece ter se arrefecido e a bancada da saúde no Congresso cedeu.

“Queremos com o PL preservar a autonomia do médico e do profissional. A decisão se a primeira consulta será presencial ou não é dele. Acho que o PL vai trazer sustentabilidade para o SUS e levar acesso à saúde a todos, inclusive a regiões distantes dos centros urbanos”, resume a deputada.

Sem volta

O fim da Espin causou algum rebuliço entre as partes. Isso porque, como não mais existe a resolução de 2018, que foi revogada, a telemedicina teria que voltar à resolução elaborada pelo CFM em 2002, que não atende para os dias de hoje e não informa sobre os tais pontos polêmicos. Mas, para a advogada especialista em direito médico Mérces Nunes, o que foi construído na pandemia é irreversível. “Hoje em dia temos saúde digital, health techs, prontuário eletrônico, telediagnóstico para pessoas longe dos centros urbanos. Essas pessoas têm, agora, um mínimo de atendimento. Tem alguém olhando e orientando esse paciente”, afirma.

Patrícia Peck

A Advogada Patrícia Peck. Foto: divulgação

A advogada especialista em Direito Digital, CEO e sócia-fundadora do Peck Advogados, Patrícia Peck, também ressalta, assim como Nunes que, caso o PL não seja votado até 24 de maio, a telessaúde no País volta estar sob o regime da resolução do CFM de 2002. “Com certeza precisamos que a telessaúde continue a avançar e possa se consolidar ainda mais no Brasil. Logo, o fim do regime de urgência não pode significar prejuízo às iniciativas que avançaram de telessaúde no Brasil, tampouco trazer insegurança jurídica para o setor”, afirma.

Os números corroboram. De acordo com dados da Associação Brasileira de Planos de Saúde, até o momento, foram realizadas 5 milhões de consultas virtuais somente pelas operadoras da Abramge, que somam 9 milhões de beneficiários. Segundo o coordenador do comitê de Telessaúde da associação, José Luciano Monteiro Cunha, o NPS (nível de satisfação dos clientes) está em 82 e a resolutividade de uma consulta virtual é de 90%.

“Significa que as pessoas conseguem resolver o problema delas na maioria das vezes. A teleconsulta resolve boa parte dos problemas de urgências simples e problemas relacionados à eficiência dos sistemas, como troca de hospital de um paciente. Neste caso, o médico especialista precisa avaliar para ver se realmente precisa da transferência. Na maioria das vezes, o paciente faz a viagem para saber se faz sentido fazer a transferência ou não”, explica Cunha.

O coordenador acredita que seria muito prejudicial haver um gap prolongado entre a queda do Espin e a entrada da nova lei. “Gostaria que a gente tivesse isso resolvido o mais rápido possível para podermos seguir em frente com a segurança jurídica para todos. Os usuários – nem só pacientes e médicos, mas gestores e profissionais da saúde – precisam da telessaúde em muitas das suas operações”, diz Cunha.

Texto pouco aprofundado e ausência

Flávia Lefèvre

Flavia Lefèvre. Foto: divulgação

Para a advogada especializada em direito digital e do consumidor, representante da Coalizão Direitos na Rede, Flávia Lefèvre, o texto do PL 1998/2020 é “superficial”.

“Tendo em vista que o teleatendimento no caso do tratamento da saúde significa uma quebra bastante profunda de paradigma quanto à atenção que o ser humano demanda para poder ser diagnosticado e tratado, me surpreendeu bastante a superficialidade da lei”, avalia.

Para Lefèvre, o projeto propõe que a prática da telessaúde deve observar os preceitos do Marco Civil da Internet, da LGPD (Lei de Proteção de Dados Pessoais), da lei que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, o que em alguma medida garante direitos fundamentais importantes.

“Porém, chama a atenção o Projeto de Lei não fazer menção ao Código de Defesa do Consumidor, que é justamente a lei que estabelece a Política Nacional das Relações de Consumo e estabelece o regime de responsabilidade dos prestadores de serviços, inclusive os serviços de saúde”, ressalta a advogada.

Lefèvre acredita ser imprescindível que a matéria seja mais debatida e, assim, aperfeiçoada.

Atraso

Segundo Peck, o Brasil demora para votar o PL que regulamenta a telessaúde.

“Com toda certeza o Brasil sempre esteve atrasado nesta pauta. A telemedicina já é regulamentada em diversos países, incluindo Estados Unidos, Colômbia, Austrália, Reino Unido, Bangladesh, China, México, Noruega, Portugal, dentre outros. Conseguimos acelerar excepcionalmente devido à pandemia, o que trouxe um grande ganho para o País e toda a sociedade brasileira e agora é o momento de pisar ainda mais no acelerador. Não podemos desmobilizar os investimentos já realizados. Ao contrário, é preciso garantir com uma regulação moderna e ampla mais investimentos para o setor”.

E complementa: “Nosso País possui dimensões continentais, contando hoje com apenas 47 milhões de usuários do sistema suplementar de saúde (saúde privada), restando ao SUS a acomodação de mais de 160 milhões de pessoas em meio a estruturas defasadas, insuficientes e de distribuição heterogênea, concentradas em grandes centros urbanos”.