O vídeo do youtuber Felca sobre a adultização de crianças e adolescentes acabou criando um movimento em prol de criar um marco legal sobre a proteção de menores em ambientes digitais. Nesta semana, o Congresso Nacional aprovou um projeto que cria uma lei neste sentido, a primeira da América Latina.
Especialistas repercutiram o impacto positivo que a lei terá, mas alertam que ainda há trabalho a ser feito. Maria Mello, líder do eixo digital do Instituto Alana, voltado para a proteção de crianças e adolescentes, afirmou a Mobile Time que a matéria representa um avanço “histórico e inédito na proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital, ao trazer proibições claras sobre práticas abusivas como o perfilamento para publicidade e a exploração de vulnerabilidades emocionais”.
“No entanto, ele não esgota o tema. A lei é um passo fundamental, mas a proteção efetiva depende de múltiplas frentes a partir de agora: regulamentação – como exemplo, será essencial detalhar pontos como a vinculação de contas de menores aos responsáveis legais e a definição de “acesso provável” a serviços digitais, para evitar brechas que permitam às plataformas se esquivar da responsabilidade –, fiscalização independente e contínua, além de conscientização das famílias e da sociedade”, avalia.
A SaferNet Brasil divulgou relatório na semana passada em que ressalta o cenário de agravamento da violência sexual contra crianças e adolescentes em ambientes digitais. Entre 1º de janeiro e 31 de julho de 2025, o Canal Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos registrou 49.336 denúncias anônimas de abuso e exploração sexual infantil, 64% do total de notificações no período.
Até 31 de dezembro de 2024, em 19 anos de série histórica, o canal da SaferNet recebeu ao todo 4.936.655 denúncias. Desse total, 2.153.069 denúncias foram de links contendo imagens de abuso e exploração sexual infantil, 43,6% do total.
A organização observou duas tendências críticas que modelaram o cenário: o aumento expressivo das denúncias após a publicação do vídeo “Adultização”, do Felca, que até esta sexta-feira, 29, acumulava 49 milhões de visualizações, gerando um recorde histórico em agosto que acabou pautando os parlamentares; e o uso crescente da inteligência artificial generativa para criar material de abuso sexual infantil, tanto por meio da manipulação de imagens reais quanto da produção de conteúdos hiper-realistas totalmente sintéticos.
Para Mello, a lei aprovada e encaminhada à sanção do presidente Lula deve “produzir impactos significativos na redução de abusos online”.
“Ao priorizar a remoção de conteúdos de exploração sexual, pornografia e assédio, cria-se um patamar de responsabilidade para as plataformas. O veto ao impulsionamento e à monetização de conteúdos sexualizados envolvendo crianças é outro ponto crucial, pois desincentiva práticas que hoje alimentam redes de exploração”, explica ela.
“Ao exigir relatórios semestrais de transparência e obrigar empresas a implementar políticas educativas e canais de apoio, o texto fortalece tanto a prevenção quanto a resposta aos crimes. Apesar disso, sabemos que o problema é multifatorial: a lei ajuda a reduzir riscos, mas será necessária uma atuação integrada de empresas, famílias, escolas e autoridades para enfrentar abusos e crimes de forma mais ampla”, completa.
O advogado Luis Fernando Prado, especialista em privacidade e proteção de dados, vai na mesma direção e destaca que o chamado ECA Digital, apesar de “louvável”, não é a única proteção de crianças online. “É importante ressaltar também que a proteção de crianças e adolescentes no ambiente online é uma responsabilidade compartilhada, e não um dever exclusivo das empresas de tecnologia.”
Adaptação das redes
O cumprimento do novo arcabouço legal será uma questão para as redes sociais. É importante lembrar do forte lobby contra o chamado PL das Fake News por parte das big techs que, de um lado foi ao campo negociar com os parlamentares, e por outro, Google, Meta e Spotify foram alguns dos exemplos que investiram em campanhas publicitárias junto ao usuário para protestar contra a matéria, enterrada pela Câmara.
“As big techs terão um ano para se adaptar, e sabemos que a adequação plena dependerá tanto da pressão regulatória quanto da existência de uma autoridade independente para fiscalizar o cumprimento da lei e aplicar sanções. O histórico mostra que, sem fiscalização robusta, essas empresas tendem a priorizar seus modelos de negócio em detrimento da proteção infantil”, ponderou a pesquisadora do Instituto Alana.
“Portanto, acreditamos que a lei cria as bases para que as plataformas sejam obrigadas a se adequar, e sua efetividade virá em grande medida da capacidade de monitorar e cobrar a implementação das medidas. Transparência, relatórios obrigatórios e participação social nesse processo serão elementos decisivos para que as big techs assumam suas responsabilidades de forma real e concreta”, finaliza.