Um dos principais desafios regulatórios em telecomunicações é definir e criar condições para que a concorrência entre serviço tradicional e serviço de valor adicionado (SVA) seja justa. Para Carlos Baigorri, presidente da Anatel, houve uma mudança radical dos SVAs desde o início da privatização dos serviços de telecom. E, se antes, eram insumos que agregavam valor à rede, agora, são o core da rede. A questão é que existe uma assimetria regulatória entre os serviços tradicionais regulados e aqueles chamados de disruptivos, como streaming, redes sociais e aplicativos de mensageria, não regulados.

Durante sua fala de abertura para o dia dedicado à regulação de telecomunicações do Regulation Week 3rd edition, nesta quinta-feira, 16, que aconteceu na FGV Direito Rio, Baigorri lembrou que a Lei Geral de Telecomunicações diz que o serviço de valor adicionado não deve se confundir com o serviço de telecomunicações. Ou seja, ele agrega valor, mas não pode se confundir com a rede em si.

“Só que hoje, o que era marginal, o que era o serviço de valor adicional, virou o serviço principal. E as redes de telecomunicações, o 3G, o 4G, o 5G, a banda larga, deixaram de ser um serviço em si e passaram tão somente a ser um meio para acesso de serviços de valor adicionado. E o que são os serviços de valor adicionado? É tudo o que vocês estão usando aí agora. É o WhatsApp, é o Instagram, é o Tinder, a própria internet é um SVA. Hoje, as pessoas compram acesso à internet não pelo simples acesso à internet, mas para, por meio dela, ter acesso a diversos serviços”, resumiu para a plateia.

TV por assinatura e streaming

Entre os exemplos dados, estão o caso da TV por assinatura e os serviços de streaming. A primeira perde terreno aceleradamente para o segundo, mas não necessariamente porque houve uma melhora na qualidade prestada pelos streamings, mas, sim, por uma assimetria regulatória.

Quem opera sobre essa lei (TV por assinatura) possui uma série de obrigações regulatórias, legais, exigidas tanto pela Ancine quanto pela Anatel. “Só que, por outro lado, os serviços de streaming não têm obrigação nenhuma. E aí você começa a ver o mercado de TV por assinatura encolhendo, encolhendo, encolhendo e o outro de streaming crescendo, crescendo, crescendo”, disse.

Baigorri explicou que, sob a perspectiva do consumidor, são produtos que podem ser trocados um pelo outro. “No ambiente de TV por assinatura, a Anatel e a Ancine têm ampla competência regulatória para estabelecer uma série de regras, mas no mercado de streaming ninguém tem competência regulatória. Não existe nenhum tipo de obrigação, a não ser as obrigações gerais, como as de direitos do consumidor”, disse.

“Não é razoável que ambos sejam regidos por regras diferentes. Porque, no final do dia, quem ganha ou perde nesse mercado pode ser definido não pelo seu produto, não pelo seu conteúdo, não pela sua prestação de serviço, mas sim pelas regras às quais está submetido”, resumiu. Ou seja, o Estado define o vencedor e o perdedor.

Desafios do modelo regulador x assimetria regulatória

Anatel; Baigorri; Starlink; desafios

Carlos Baigorri, presidente da Anatel. Crédito: Isabel Butcher/Mobile Time (2025)

Ele reforçou que o Brasil escolheu um modelo de agências reguladoras e com intervenção do estado regulador. Ou seja, o que acontece com a TV por assinatura ou entre as big techs e as empresas de telecom, para Baigorri, não “parece razoável” que este modelo assimétrico de regulação seja responsável por definir “quem é o ganhador e o perdedor do mercado”.

Como o estado não tem capacidade para regular todos de maneira simétrica, como chegar no “level plain field”?

“Você começa a ter uma injustiça regulatória”, diz. “É a mesma coisa que a gente vê nas chamadas telefônicas”, exemplificou. Empresas como Claro, TIM e Vivo têm uma série de obrigações regulatórias, mas, se a chamada é feita pelo WhatsApp, não existe regra. “E aí, um é de graça e o outro tem custos. Então, você começa a ver que é a vontade do Estado que está definindo quem ganha e quem perde o mercado”, avançou em sua teoria.

A concepção de estado regulador – que o Brasil possui – não é condizente com a neutralidade em um contexto de desenvolvimento e disrupção tecnológica.

“Mesma coisa agora a gente está vendo com a Starlink anunciando que pretende prestar serviços direto para o satélite (D2D, ou direct-to-device). Então, você imagina, em algum tempo, na visão do Elon Musk, você não vai precisar mais ser cliente da Vivo, da Claro ou da TIM. Você vai pegar o seu celular, vai conectar direto no satélite e você vai poder andar o mundo todo falando lá no seu celular que vai ser da Starlink. Só que como ficam as questões, por exemplo, de interceptação telefônica? Quando a Polícia Federal quiser interceptar o celular de algum investigado, ela vai mandar um e-mail lá para Austin, Texas, pedindo que o Elon Musk quebre o sigilo? Todos os países do mundo vão ter que fazer isso? Como é que fica a soberania dos estados nacionais no que diz respeito à prestação de um serviço público em território nacional?”, questionou.

Para Baigorri não se trata de uma questão para ser tratada somente pelos órgãos reguladores, para os estados nacionais, mas para a sociedade como um todo. “E esse, na minha visão, é o desafio que permeia questões como a desinformação em plataformas de redes sociais, questão de soberania digital e soberania nacional”, resumiu.

A adesão ao modelo dos Estados Unidos, de que a internet é algo que estaria em uma “outra dimensão”, onde tudo pode, uma “visão libertária”, faz com que os estados fiquem sem lugar de fala. Esse modelo foi absorvido pelo Ocidente, mas alguns outros países não compraram a ideia. Deu o exemplo dos Emirados Árabes Unidos, que possui restrição de acesso a determinados sites.

“Acho que todas essas disrupções e esses desafios fazem com que a gente precise refletir. É isso que a gente quer? A gente quer os estados nacionais completamente de fora, alheios à governança da internet, às regras de numeração IP, administração de nomes e domínios? A questão é que nós aderimos a isso sem muita reflexão. E me parece que o momento das inovações e das soluções tecnológicas nos trazem novamente a essa reflexão – de que nós aderimos sem muito pensar”, concluiu.

 

*********************************

Receba gratuitamente a newsletter do Mobile Time e fique bem informado sobre tecnologia móvel e negócios. Cadastre-se aqui!

E siga o canal do Mobile Time no WhatsApp!