A greve dos motociclistas de aplicativos de delivery será uma prova de testes para os profissionais e para as empresas. De acordo com Franklin Lacerda, diretor de estudos da Análise Econômica Consultoria, a paralisação marcada para esta quarta-feira, 1º, terá como missão para entregadores mostrar sua força organizacional e para as empresas dos apps a habilidade de conversar, negociar e adaptar cultura e modelo de negócios.

“Tem uma variável chave em jogo que será um teste de fogo: a capacidade de organização e mobilização dessa classe. Queremos ver na quarta-feira o quão mobilizados eles estão”, avalia Lacerda. “Eu entendo que se as empresas não se ajustarem, os trabalhadores vão procurar outras formas de ganho. Com isso, as empresas devem ser impactadas, assim como o modelo de negócios e de gestão”, acrescenta.

O especialista comenta que o problema da greve não é de hoje. Começou com o fenômeno da mudança tecnológica e estrutural dos anos 2000 e 2010, um movimento que ocorreu com Google no mercado de buscadores, Facebook com o compartilhamento de dados e mais recentemente com a Uber em corridas e caronas compartilhadas, e agora chega aos apps de delivery, que passaram a ter forte concorrência e disputa de mercado, o que resultou em redução de receita para os motofretistas.

“Quando vamos consolidando as informações da web, a renda mensal de um entregador de 4 a 5 anos atrás podia chegar a R$ 10 mil. Hoje está por volta de R$ 2 mil por mês. É uma pressão bastante significativa para esses trabalhadores. Agregando a pandemia, que teve queda da demanda no geral, isso pressionou fortemente a renda desses profissionais”, afirma o analista.

Direitos

Vale lembrar, além da queda nas receitas e nas corridas, o estopim da greve foi a falta de condições de trabalho para os motoboys. Além de trabalharem até 18 horas por dia para obter uma renda razoável, a categoria reclama de falta de insumos para higienização e sanitização na crise provocada pelo novo coronavírus, o que pode levar muitos dos entregadores a contraírem Covid-19.

“Os motoristas estão sentindo no bolso e sentindo a falta de apoio dos apps”, diz Gerson Cunha, vice-presidente do SindimotoSP. “Faltam EPI, álcool em gel, máscara, tem a questão da baixa remuneração, falta de seguro acidente, saúde e regularização dentro da CLT”, argumenta.

Para Paulo Lima, líder do movimento Entregadores Antifascistas e um dos principais incentivadores da greve, o problema é mais básico. Os motoboys levam as comidas, os supermercados e os pacotes de entregas aos consumidores, mas eles não conseguem se alimentar e nem alimentar suas famílias.

“A nossa pauta está em torno de comida. Queremos garantir café, almoço, jantar, lanche da tarde e da madrugada para o trabalhador. E aí, sim, checar ao ponto que se reconheça o vínculo empregatício”, diz. “[Esse movimento é] para olhar um pouco para nós. Olhar com mais carinho para os entregadores, pois esse processo de uberização vai acontecer para todas as classes. A nossa luta era para melhorar a CLT, e agora estamos lutando para recuperar a CLT”.

Atualmente, as empresas de apps afirmam que os entregadores são autônomos. Ou seja, eles não estão sob o regime de trabalho celetista. Mas defendem que estão fornecendo EPIs e desde 2019 – quando foi documentada a morte de um entregador por exaustão –, e que oferecem seguros de vida, saúde ou contra acidentes.

Importante dizer que, mesmo como trabalhadores autônomos, os motofretistas têm direito a organizar greve. Inclusive, as empresas 99, Rappi e iFood defenderam o direito à liberdade de expressão e de manifestação dos seus associados, em nota enviada ao Mobile Time na última segunda-feira, 29.

Disputa

Aarão Miranda da Silva, professor de direito da Faculdade São Judas Tadeu e relator do Tribunal de Ética da OAB-SP, explica que, se conseguirem acesso à CLT, os motoristas terão direitos trabalhistas mínimos (previstos no art. 7º da CLT), como: salário mínimo, férias, 13º salário, FGTS, pagamento de horas extras, adicionais e direitos previdenciários. Sem o regime de CLT não há o reconhecimento do vínculo empregatício, os entregadores são considerados autônomos e recebem pela corrida realizada, nos termos do contrato celebrado com a empresa, e, nesta hipótese, o dever da empresa junto ao trabalhador é pagar o quanto foi apurado pelo trabalho prestado.

Miranda da Silva acredita que embora a disputa seja na era digital, ela seria uma clássica disputa na relação ‘capital x trabalho’: “A situação no momento de pandemia é crítica, pois muitos trabalhadores têm nestas atividades sua única fonte de renda para sobreviver. Ao mesmo tempo, eles não possuem segurança jurídica ou econômica alguma, e as empresas de delivery que utilizam estas ferramentas têm seus lucros questionados e colocados em xeque ante a concorrência do setor”.

“Ou seja, há típica relação entre “capital x trabalho”, sendo que o debate por detrás de todas as questões é: se o trabalhador vai ter mais direitos e quanto isso vai custar para o capitalismo, uma vez que a redução de lucro por parte das empresas não é objeto de concessão, pois essas empresas operam no limite do lucro”, completa.

O professor lembra que essa disputa tem demandas na Justiça pelo Ministério Público do Trabalho, que considera as atividades dos entregadores e trabalhadores de app ou trabalhadores de plataformas como sendo atividades celetistas com uma subordinação diferenciada. Mas recorda que parte do Poder Judiciário trabalhista se recusa a aceitar este vínculo de emprego, como o próprio o Tribunal Superior do Trabalho que julgou no início de fevereiro deste ano de 2020 o caso envolvendo um trabalhador que pediu vínculo com a Uber.

Finanças

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A questão da receita das empresas também foi levantada por Lacerda, da Análise Econômica. Para ele, embora os números de faturamento, lucro e operações sejam obscuros pelos apps – vale dizer que apenas a Uber tem capital aberto entre essas empresas –, a greve mostra que elas sofrerão eventualmente impactos financeiros e precisarão se adaptar às demandas do mercado e dos trabalhadores, uma vez que estas começam a ganhar força em outros países da América Latinha, como Uruguai e Argentina.

Mas lembra que muitas delas têm caixa para isso, pois receberam capital de fundos de investimento (Rappi, Loggi e Uber com SoftBank) ou fazem parte de grandes conglomerados (99 da DiDi e iFood da Movile): “Uma das coisas que nos preocupam são os números obscuros, como faturamento. Isso pode ter impacto sobre receita e margem de lucro dessas empresas. Mas elas passaram por um movimento forte de fundo de investimento aportando capital, o que gera um movimento de institucionalização”.

“Os pedidos dos entregadores são bastante plausíveis, mas não será um movimento fatal para as empresas. Haverá um movimento de ajustamento e os players que tiverem mais consolidados vão sobreviver”, completa o diretor da consultoria. “Quem não estabelecer uma boa negociação e um bom modelo de negócios (neste novo universo) deve ter impacto financeiro e corre o risco de desaparecer. Mas quem se adaptar vai sobreviver”.

Impactos

Miranda da Silva e Lacerda também avaliam eventuais impactos da greve na sociedade. Nesta terça-feira, 30, os estabelecimentos (restaurantes e bares menores) começaram a avisar seus clientes que poderão estar fora dos apps amanhã, mas seguirão com atendimento em outros canais, como o WhatsApp. Pelo lado do consumidor, o professor de direito da Universidade São Judas Tadeu explica que o direito da população ante os apps é conferido pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), que garante que os serviços sejam prestados. Em caso de lesão ao CDC por falta de prestação de serviços, as empresas podem ser multadas.

Desde a última semana, 99, Delivery Center, James, iFood, Loggi, Uber e Rappi, além da Associação Brasileira de O2O (ABO2O) foram procuradas pelo Mobile Time para entender quais as possíveis ações para evitar um blackout nos apps. Nenhuma companhia respondeu sobre como atuarão durante a parada dos entregadores.

Lacerda atentou que os apps estão oferecendo taxas promocionais aos entregadores para não aderirem à greve, como R$ 30 por hora rodada.

Conjuntura

Lacerda explicou que o momento atual é bem diferente das disputas de motoristas contra a Uber, pois, na época havia mais relação com a política e havia grupos mais organizados contra e a favor, como os motoristas de apps versus taxistas, ambos os grupos pressionaram por regularizações a seu favor. Na atual disputa, o momento depende da capacidade de organização dessa classe para garantir as demandas.

Questionado por Mobile Time se o atual movimento, atrelado à crise pandêmica, pode indicar o fim da gig economy, que engloba uma economia digital com empresas intermediando contratos de profissionais autônomos ou temporários com os consumidores, o analista econômico acredita que não. Para ele, o momento é de desconstrução e adaptação.

“Citando Joseph Schumpeter, é um momento de destruição criadora. É um movimento mais vagaroso, pois depende do avanço da estrutura de Internet e da capacidade interna para desenvolver novas empresas e apps”, disse. “Não é o fim da gig economy, mas é uma prova de fogo bastante significativa. No modelo que usamos aqui, esse é o momento da institucionalização.  É o movimento de passar da infância para a adolescência para essas empresas, de ganhar maturidade”.