Ilustração: Cecília Marins

A eventual criação de um marco brasileiro de mercados digitais não pode ser uma cópia do Ato de Mercados Digitais da Europa (DMA). É o que indicam representantes da sociedade civil, da academia e de empresas que participaram de debate promovido pelo Comitê Gestor da Internet Brasileira (CGI.br) nesta quinta-feira, 1.

Para Jonas Valente, professor da Universidade de Oxford, a questão não é importar soluções, mas pegar os bons exemplos e analisar com outros problemas de plataformas digitais que são caros à sociedade brasileira e precisam ser tratados na lei, como desigualdade, injustiça social, ameaças à democracia e opressão de classe, raça e gênero. Tais questões são agravadas por problemas como: desinformação; discurso de ódio; violência política; descriminalização em sistemas automatizados; concentração de propriedade; e normatização de trabalho em plataforma.

“São problemas graves que Facebook Paper, Uber Files e academia têm denunciado. Nós precisamos identificá-los para apontar soluções. Não podemos olhar a tecnologia em si, temos que olhar a tecnologia por uma perspectiva dialética. As plataformas não são só infraestruturas, são mediadores ativas de interações. Elas têm controle privado dos fluxos informacionais e de transações online. Vemos plataformas que aproveitam suas bases para avançar em outros nichos e ter avanço de poder”, completou.

“Devemos fazer isso a partir dos problemas que impactam a sociedade. Considerar o modelo de estado promotor de direitos, da democracia e da justiça social. Promover a equidade (raça, gênero, orientação sexual). Além de limitar o poder das plataformas sobre o debate público, um exemplo são as falhas das plataformas nos debates políticos nas eleições”.

Por sua vez, para Sergio Paulo Gallindo, presidente da Brasscom, uma das questões principais do texto europeu, que não deve ser aplicada na legislação brasileira, é a tentativa de harmonizar o direito concorrencial, algo que já existe em outros mecanismos de lei, como a LGPD. Em sua visão, além do DMA, a discussão também deve olhar o modelo norte-americano (ainda em discussão no Congresso daquele país), pois há arcabouço regulatório similar ao brasileiro.

Corregulação

Os especialistas ainda discutiram como a lei pode ser feita. Paulo Rená, membro da Coalizão de Direitos na Rede, acredita que há espaço para corregulação com todos os participantes do ecossistema, governo, setor privado, sociedade civil e academia. Contudo,  o especialista afirmou que existe uma assimetria na troca de dados das empresas com o resto da sociedade, assim como falta uma abertura de diálogo por parte das grandes empresas.

“Corregulação é um caminho importante, tem que diálogo, tem que colocar na mesa autoridade central ou não. Talvez uma instância para diálogo, um código de conduta para as plataformas. Eles (YouTube, Google, Meta e TikTok) conversaram para dizer que não queriam o PL 2630/2020 – mais conhecido como Lei das Fake News. Mas qual o compromisso que eles querem? Isso não precisa ser feito a portas fechadas. Sem isso, nós não conseguimos avançar na agenda. Com mais transparência temos mais direito e mais democracia no ambiente da Internet”, disse o representante da Coalizão.

Rená acredita ainda que a eventual lei de mercados digitais brasileiras deve “reafirmar os direitos humanos no direito digital” e trazer uma preocupação do equilíbrio dos poderes público e privado: “Pensar que a relação que tínhamos com o estado no século 18 era diferente. Nós teremos mais essa relação (contrato social) com o estado, mas com a plataforma”, completou.

Autorregulação

Por sua vez, Gallindo afirmou que há oportunidades para o debate de desenvolvimento da lei. Mas antes, o Brasil precisa ter “mais maturidade no uso de autorregulação”, seja pura, corregulada ou sandbox, pois o País ainda não tem essa prática. Também acredita no uso de soft laws, ou seja, códigos de conduta e técnicas sem relação com o poder público, como acontece nos EUA.

“Temos que nos calçar melhor para responder a provocação: como começar? Veja, não é questão de não ter regulação. Mas como regular”, disse o representante das empresas. “Podemos acelerar pontos que não dependem de lei, pois a tramitação de lei é lenta. Fazer o que não demanda regulação é importante. Mas também precisamos colocar no debate de regulação o impacto regulatório, medir isso. Poucas vezes vi isso em Brasília por parte dos órgãos. Hoje estamos em um mundo de dados e nós não usamos para a produção de política”, exemplificou.

Regulação total

Mais enfático, Valente acredita que a lei tem que ter papel definidor do Estado (ex ante) para o Marco dos Mercados Digitais no Brasil. Para o professor, não é mais um momento de teoria, pois há países extremamente liberais reconhecendo que a regulação ex ante é importante e não faltam “evidências de que temos muitos problemas” no que tange o controle das plataformas e aplicações digitais.

“Não estamos em uma quadra normal da história. Temos que usar os exemplos positivos de fora, e analisar os problemas estruturais e conjunturais. Temos que começar entendendo qual será o próximo governo, conjuntura do congresso, como trabalhar com o lobby estrutural das empresas, ter abertura de setores do ecossistema multissetorial, trazer a sociedade civil e precisamos olhar com o que está posto no Congresso”, disse o professor, que acredita que o PL2630/2020 é um “bom começo” para a discussão.