Advogados e pesquisadores da área de direito digital e afins veem mais pontos positivos do que negativos na proposta do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em incorporar a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) à sua estrutura. Apesar de ser uma ideia ventilada meses atrás pelo ex-secretário da Senacon, Luciano Timm, o documento surpreendeu muitos advogados especialistas.

Ana Malard

Ana Malard, Senior Partner da Malard Advogados e Sócia em Direito Econômico e compliance do Marcelo Tostes Advogados

Ana Malard, sênior partner da Malard Advogados e sócia em direito econômico e compliance do Marcelo Tostes Advogados, disse que leu duas vezes o documento: “Deu para ver que é um trabalho robusto, não é uma proposta ao vento. Vem com detalhamento que indica que o Cade já está se dedicando a isso há um tempo”. A advogada acredita que a nova função com a chegada da ANPD poderia dar ânimo ao Cade, que, segundo ela, está mais lento nas suas investigações. “Depois que a lei mudou (Lei 12.529/2011, conhecida como nova lei de defesa da concorrência) e o número de atos submetidos pelo Cade despencou. Além disso, novas investigações de condutas anticoncorrenciais também tiveram uma redução significativa nos últimos anos. Assim, olhando por esse prisma, caso incorpore essa nova função, o Cade poderá movimentar sua já robusta estrutura e muito completa equipe técnica, obviamente com as devidas adequações. E o documento mostra isso. Teriam que trabalhar duro para compatibilizar as estruturas e para mudar a lei de defesa da concorrência. E a lei de proteção de dados teria que se adaptar para o arranjo. Isso me deixa mais insegura. Olhando para a problemática do quão burocrática e trabalhosa será a adaptação, talvez isso prejudique o trabalho do Cade na defesa da concorrência”, explicou.

Mobile Time dividiu a reportagem em três pontos: os positivos, os que preocupam e a possibilidade de a ANPD ir para outro órgão do governo federal (Senacon e Anatel).

Pontos positivos

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Rafael Pellon, advogado especializado em direito digital e sócio do escritório Pellon de Lima Advogados

Rafael Pellon, advogado especializado em direito digital e sócio do escritório Pellon de Lima Advogados, aponta três critérios positivos para que o Cade abrace a ANPD. O primeiro deles é a independência do conselho, outro é a interseção de assuntos tratados pelos dois e o terceiro é do ponto de vista administrativo.

”O fato de o conselho já ter independência – tanto histórica quanto regulatória – e o fato de a ANPD ter uma interseção de temas com o Cade são pontos positivos. Do ponto de vista administrativo, é mais ágil partir de uma estrutura já existente do que começar a criar uma nova estrutura. Por melhor que fossem as pessoas, teria que alinhar os princípios mais básicos, ajustar métodos de trabalho, criar políticas internas, estrutura funcional e por aí vai. Além da preocupação econômica de criar uma estrutura estatal nesse momento, de pandemia, de alto gasto. É melhor otimizar do que gastar com uma estrutura nova”, resumiu o advogado.

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Flavia Lefèvre, advogada especialista em direito do consumidor e digitais

Para Flavia Lefèvre, advogada especialista em direito do consumidor e digitais, a ida da ANPD para o Cade seria uma boa solução, uma vez que sai do braço da Presidência da República, ganhando mais autonomia, como o próprio documento ressalta. “Fiquei muito animada”, disse para Mobile Time. Lefèvre também destaca como ponto positivo a implementação rápida, se tudo caminhasse de acordo com o previsto, para janeiro de 2021, conforme o documento aponta. “Acho que neste momento seria uma solução muito importante e que acabaria com o discurso que as empresas têm feito de que não daria para colocar a LGPD em prática por falta de uma estrutura de regulação e legislação”, complementa.

Marcela Mattiuzzo, especialista em privacidade de dados e responsável pela área de proteção de dados do Vinícius Marques de Carvalho Advogados (VMCA) entende que, no atual momento, o Cade é a melhor opção. “Qual a realidade hoje? Certamente não é uma autarquia fora da presidência, com orçamento próprio, corpo técnico próprio. A realidade de hoje, na lei, é de um órgão (vinculado) à Presidência da República, sem autonomia orçamentária. É um apêndice da presidência. Nesse contexto, a proposta tem uma vantagem para levar a agenda para uma autarquia”, diz. Mattiuzzo também aponta a reputação e o reconhecimento da instituição no âmbito nacional e internacional como algo positivo.

Preocupações

Christian Perrone

Christian Perrone, pesquisador sênior da área de direito de tecnologia do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e consultor de políticas públicas

Por sua vez, Christian Perrone, pesquisador sênior da área de direito de tecnologia do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) e consultor de políticas públicas, não vê com tanto entusiasmo a ida da ANPD para o Cade. “Acho positiva a ideia de pensar em soluções. Há elementos positivos colocar dentro de uma autarquia federal a ANPD. O Cade tem conhecimento e estruturação técnica para isso, é uma autarquia independente, com histórico de tratar investigação dentro das empresas e já possuir um tribunal”. São características, segundo o pesquisador, interessantes e que se enquadram nos padrões internacionais – como o da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do Regulamento Geral de Proteção de dados (GDPR) da Europa. “Mas há vários elementos que tornam essa estruturação muito complexa. Um dos problemas é a implementação da ANPD junto com a atuação do conselho na política concorrencial”.

Perrone acredita que há uma diferença de abordagem: enquanto a LGPD prioriza o indivíduo, seus dados e direitos, o Cade foca o mercado e como ele funciona. “Existe uma interseção entre o direito do consumidor e o antitruste. Ainda que o Cade seja uma autarquia multissetorial, a própria estrutura do Cade não tem a mesma abordagem. A ANPD me parece mais próxima ao CGI do que ao Cade, Anatel ou Senacon. É uma questão de multisetorialismo e de pensar nos diferentes stakeholders. “Apesar do documento dizer que há um alinhamento claro de proteção de dados e antitruste, vejo dois pontos não muito compatíveis”

“O Cade se preocupa com melhorias no mercado e como ele funciona e, em segundo plano, atua também no direito do consumidor. Existe uma interseção entre a política pública do direito do consumidor a política pública do antitruste. E, no caso, acredito que o Cade priorize mais o mercado do que o consumidor. E a LGPD se estruturou primeiro pensando no indivíduo e depois no mercado. São lógicas diferentes”, completou.

Para Mattiuzzo,  uma preocupação seria transformar a autoridade concorrencial por conta da política de dados numa política concorrencial focada em mercados digitais. “O Cade faz movimentos nesse sentido. Hoje é discutido no mundo inteiro temas de concorrência relacionados a mercados digitais, empresas de tecnologia e suas condutas. E existe um movimento natural nesse tipo de debate. É importante que a política de proteção de dados não seja a única preocupação do Cade. Este deveria continuar olhando para outras questões concorrenciais que só ele olha, como para os pequenos, os postos de gasolina, por exemplo. Mas dá para fazer”.

Cade x Senacon x Anatel

Além do documento do Cade, a Senacon, no ano passado, já havia sugerido a incorporação da ANPD à estrutura do Conselho por meio de uma nota técnica. Segundo Luciano Timm, ex-secretário da Senacon e professor de direito econômico da FGV, essa seria a melhor opção para o momento de restrições orçamentárias. “Não víamos como criar uma autoridade do zero”, disse ao Mobile Time, lembrando que a sugestão da criação da ANPD partiu da Senacon. “O melhor modelo seria fazer a mesma história como fizemos no Cade, de começar no Ministério da Justiça e, se fosse o caso, criar uma agência reguladora. A nossa realidade orçamentária nunca foi a da Europa”.

Os especialistas ouvidos por Mobile Time acreditam que, entre as instituições que já sugeriram a incorporação da ANPD às suas respectivas estruturas, o Cade estaria mais preparado. A Anatel, por atender exclusivamente o mercado de telecomunicações, seria a menos apropriada para a função.

“Acredito que a natureza autárquica do Cade poderia, a princípio, garantir mais autonomia para a ANPD. Entretanto, pelo mérito e vocação temática, a Senacon também seria apropriada. A Anatel, a despeito de sua natureza autárquica, tematicamente é muito distante do tema da proteção de dados” afirma Lefèvre.

Perrone, do ITS Rio, também entende que a Anatel não se adequaria pelo fato de tratar exclusivamente o mercado de telecomunicações. “A Anatel tem como seu principal interlocutor as empresas – embora também contemple a participação de outros elementos da sociedade. E empresas de um determinado setor, o de telecomunicações, complicando ainda mais a implementação da ANPD em sua estrutura”, explica o pesquisador.

ConTIC

Procurada por este noticiário, a Confederação Nacional da Tecnologia da Informação e Comunicação (ConTIC) enviou um comunicado onde reforça a importância de uma autoridade independente técnica e financeiramente “e cujas prerrogativas sejam focadas na proteção de dados para que de fato se garanta um ambiente viável para a aplicação da LGPD para todos os setores da economia”.

Segue a nota completa:

A Lei Geral de Proteção de Dados (13.709/2018), acertadamente, determinou a criação de uma entidade própria com uma série de atribuições, que é a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). A ConTIC, em carta enviada ao Congresso Nacional, manifestou seu apoio ao adiamento da entrada em vigor da LGPD, exatamente por entender que seria fundamental criar previamente a ANPD, conforme está previsto na lei, para assegurar governança mais adequada e segurança jurídica a todos os agentes públicos e privados envolvidos na proteção e tratamento de dados pessoais, bem como ao cidadão brasileiro. É fundamental que se instale uma agência com independência técnica e financeira e cujas prerrogativas sejam focadas na proteção de dados para que de fato se garanta um ambiente viável para a aplicação da LGPD para todos os setores da economia.

A Associação Brasileira do Online to Offline (ABO2O) e a A ssociação Brasileira das Empresas de Software (Abes) também foram procuradas por essa reportagem. A ABO2O preferiu não se pronunciar e a Abes não retornou até o fechamento desta reportagem.