O que têm em comum uma mina de minério de ferro, uma plataforma offshore de extração de petróleo, uma usina de cana-de-açúcar, um hospital, uma montadora de automóveis, um armazém de equipamentos de telecomunicações, uma rede de energia elétrica e uma fábrica de motores elétricos? Todos são exemplos brasileiros de lugares onde foram implementadas redes móveis privadas para aplicações específicas de Vale, Petrobras, Grupo São Martinho, Hospital das Clínicas da USP, Stellantis, Neoenergia, Huawei e WEG, respectivamente. O Brasil lidera na América Latina em quantidade de projetos desse tipo e a expectativa é de que a demanda por aqui se acelere nos próximos anos por conta de três fatores: 1) chegada do 5G; 2) liberação da faixa de 3,7 GHz pela Anatel para redes privadas; 3) pressão competitiva por transformação digital nas mais variadas verticais.

Uma rede móvel privada – ou ‘privativa’, como preferem alguns – consiste em uma rede celular com destinação exclusiva para uma determinada aplicação, em geral corporativa ou governamental, em uma localidade específica. A demanda costuma vir de empresas instaladas em áreas onde não há cobertura de telefonia celular ou que precisem de uma rede sem fio de alta velocidade, segura e com garantia de qualidade de serviço para viabilizar projetos de transformação digital.

Outra característica importante dos projetos é que eles não se limitam à conectividade. Não se trata de simplesmente levar cobertura móvel para uma fazenda ou fábrica, mas de prover uma combinação entre conectividade, aplicações e processamento/armazenamento na nuvem pública ou privada. Por isso, as iniciativas requerem a participação de empresas diversas, como operadoras móveis, fabricantes de equipamentos, desenvolvedores de softwares e integradores operacionais e de TI.

Carlos Roseiro, da Huawei: “Temos uma grande oportunidade de negócios para o setor de TIC”

Os setores de manufatura, mineração, agricultura e logística são apontados por fontes ouvidas por Mobile Time como aqueles que mais demandarão redes privadas móveis nos próximos anos no Brasil. “Temos uma grande oportunidade de negócios para o setor de TIC vendendo soluções para digitalização dessas empresas”, comenta o diretor de soluções integradas da Huawei no Brasil, Carlos Roseiro.

A variedade de aplicações fica clara analisando-se alguns dos exemplos citados na abertura desta matéria. A Vale utiliza sua rede móvel privada para controlar remotamente caminhões e outros veículos e equipamentos pesados em sua mina em Carajás, no Pará. No armazém da Huawei em Sorocaba, carrinhos-robôs transportam equipamentos sozinhos pelos corredores, conectados por uma rede privada. A Stellantis instalou uma rede privada 5G em sua fábrica em Goiana/PE para uma aplicação de video analytics com inteligência artificial para controle de qualidade na aplicação de emblemas nos automóveis, diminuindo o índice de erros em um processo que antes era feito somente por humanos. A Neoenergia monitora remotamente medidores de eletricidade em Atibaia/SP, graças a uma rede móvel 4G, combinada com outras tecnologias de comunicação de dados. O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP está testando uma rede privada 5G para o auxílio a exames de ultrassom e teleconsultas para habitantes de regiões remotas na Amazônia.

Arquitetura de rede

Uma rede privada móvel pode ser construída com diferentes arquiteturas. As estações rádio base (ERBs) podem ser próprias do cliente corporativo, ou integradas à rede pública de uma operadora móvel – neste segundo caso, a qualidade do serviço pode ser garantida via software e contratos de SLA. O core da rede pode ser centralizado na operadora móvel parceira ou localizado dentro do cliente corporativo, quando houver necessidade de maior segurança e menor latência. Da mesma forma, o processamento e o armazenamento dos dados coletados em aplicações de Internet das Coisas (IoT) em redes privadas móveis podem acontecer na nuvem pública ou em minidata center na borda da rede.

“Redes privativas são algo muito novo. Haverá diferentes sabores delas. Mesmo clientes em uma mesma vertical vão demandar soluções diferentes. Cada empresa que tiver uma operação complexa e/ou de missão crítica vai ter um desenho de rede adaptado à sua realidade. Uma mesma fábrica pode querer uma solução para um galpão e outra diferente para o outro ao lado”, comenta Diego Aguiar, diretor de operações da Telefónica Tech/Vivo Empresas.

Diego Aguiar, da Telefônica Tech: “Redes privativas são algo muito novo. Haverá diferentes sabores delas”. Foto: divulgação

Há quem veja no mercado de redes privadas móveis uma oportunidade para implementar projetos de OpenRAN, padrão aberto de arquitetura de redes celulares, em que é possível combinar componentes de diferentes fornecedores. Mavenir e NEC, por exemplo, são duas entusiastas do OpenRAN em redes móveis privadas. “OpenRAN é bom para as MNOs e também para empresas, que ganham maior flexibilidade (em suas redes). Os cell sites viram edge data centers”, diz Antonio Tostes, diretor de pré-vendas para América Latina e Central da Mavenir.

Espectro

O espectro adotado também pode variar. Em geral são utilizadas faixas tradicionais de 4G e de 5G nas frequências licenciadas pelas operadoras móveis. Porém, existem projetos de redes privadas móveis que prescindem de operadoras. Nestes casos, é solicitada uma faixa de espectro diferente à Anatel. Assim foi feito na rede privada da Neoenergia, construída com uma licença temporária em 3,5 GHz antes do leilão de 5G, no qual essa faixa foi leiloada. Agora a distribuidora de energia terá que trocar de frequência e analisa outras opções. 

Vale lembrar que a Anatel pretende destinar a faixa de 3,7 GHz exatamente para redes privadas móveis, o que deve alavancar a implementação de novos projetos.

Wi-Fi e outras tecnologias

Mas por que insistir em padrões de telefonia móvel em vez de adotar as mesmas aplicações sobre uma rede Wi-Fi 6E, cuja velocidade é alta e os preços de equipamentos mais baratos? Há pelo menos três argumentos. O primeiro é o da segurança intrínseca à rede móvel. O segundo é que a rede móvel facilita o deslocamento, trocando de maneira transparente e fluida a conexão de uma ERB para outra, o chamado “handover”, o que não funciona tão bem em uma rede Wi-Fi. Por fim, por utilizar espectro licenciado em caráter primário, pelo menos no caso das operadoras móveis, uma rede celular não sofre com o mesmo problema de interferência que aflige as redes Wi-Fi, que muitas vezes ficam congestionadas pelo excesso de roteadores e dispositivos conectados ao redor. “Com espectro não licenciado você está sujeito a interferências. Quando isso acontece, precisa resetar ou reconfigurar, e não tem a quem reclamar”, argumenta Roberto Murakami, CTO para América Latina da NEC.

Mas isso não significa que uma rede privada precise se restringir às tecnologias de telefonia móvel. Em determinadas situações, pode ser benéfica a combinação com outras redes de comunicação sem fio, como LoRaWAN, Sigfox, Bluetooth, ou próprio Wi-Fi etc. A operadora móvel virtual (MVNO) NLT, por exemplo, foi procurada por uma empresa que deseja montar uma rede privada móvel combinando 4G em uma licença especial na faixa de 2,3 GHz com uma segunda camada em LoRaWAN em 900 MHz para a conexão de sensores que demandam menos tráfego de dados. “As indústrias estão percebendo que não vale a pena ter uma rede privada móvel compartilhada com os sensores. É importante desvincular as duas coisas”, explica André Martins, CEO da NLT.

André Martins, da NLT: “As indústrias estão percebendo que não vale a pena ter uma rede privada móvel compartilhada com os sensores”

5G

A chegada do 5G no Brasil, por sua vez, vai viabilizar uma série de novas aplicações corporativas em redes privadas móveis, especialmente aquelas de missão crítica, que requerem baixíssima latência e um grande volume de tráfego de dados. É o caso de soluções de visão computacional, realidade virtual e veículos autônomos. Abrem-se também novas frequências, como as ondas milimétricas, na faixa de 26 GHz, que poderão ser usadas para aplicações que demandem altíssima velocidade.

Além disso, o 5G no padrão standalone, que será o adotado no Brasil, permitirá às operadoras implementar o chamado network slicing, que consiste na possibilidade de dedicar um pedaço da rede para uma aplicação específica. Isso facilita sobremaneira o cumprimento de contratos de qualidade de serviço (SLA) e de requisitos de segurança em redes privadas móveis. 

“No futuro, com a adoção do network slicing, a participação das MNOs aumentará exponencialmente na construção das diversas redes de uso específico”, prevê o diretor de tecnologia para a América Latina da Nokia, Wilson Cardoso.

Modelo de negócios

Tão diversificado quanto a arquitetura de uma rede privada móvel é o seu modelo de negócios. Como mencionado anteriormente, há vários papéis a serem desempenhados e é preciso organizá-los entre diferentes fornecedores. As operadoras móveis desejam liderar esse processo, atuando como orquestradoras dos projetos de redes privadas móveis, em vez de meras provedoras de conectividade. Elas enxergam nesse mercado uma oportunidade de agregar mais valor, aumentando seu protagonismo e, consequentemente, sua lucratividade.

“Um orquestrador se faz necessário porque se trata de projetos de engenharia em que o cliente final não tem a expertise dentro de casa. Essa orquestração pode ser feita pela operadora, sim, mas com parcerias para nuvem, dispositivos, aplicações etc. Essa é a ambição das operadoras”, avalia Paulo Bernardocki, diretor de soluções e tecnologia para a América Latina da Ericsson.

TIM e Vivo confirmam essa intenção. “A Vivo se posiciona para ser um orquestrador desse ecossistema. Quando se fala em IoT e redes privativas, há uma fragmentação grande dos casos de uso, e os objetivos são pouco sinérgicos: a empresa que faz o hardware tem objetivos diferente da do software e da que presta o serviço. Criamos então uma camada de orquestração em que trazemos diversos atores e entregamos para o cliente a solução completa”, descreve Aguiar, da Vivo.

“A TIM tem assumido um pouco esse papel de integrador. A conectividade em si não é a solução. Só é a solução quando se integra às tecnologias do setor atendido. Cada setor tem seus players. A indústria de agro é distinta da de manufatura. Existe o integrador de agro e existe o de indústria. E não me refiro a integrador só de TI, mas de operação também. A conversa não é só com o CIO, mas com o COO da empresa. Precisamos entender do processo produtivo. E é o integrador daquela vertical que tem esse conhecimento. A TIM pode fazer o papel de integrador de TI e buscar parcerias para o integrador operacional”, relata Paulo Humberto Gouvêa, diretor de soluções corporativas da TIM.

A maioria dos fabricantes de infraestrutura de telecomunicações priorizam a atuação como parceiros das operadoras nos projetos de redes privadas móveis. Mas alguns também se dispõem, quando solicitados, a fazerem o papel de orquestradores desses projetos.

Há ainda projetos de redes privadas sem a participação de uma operadora móvel. Neles, é construída uma rede com equipamentos e espectro independentes das redes públicas. Isso, contudo, pode sair mais caro e ser mais trabalhoso. A Neoenergia optou por esse caminho, mas para justificá-lo planeja aproveitar ao máximo a rede própria com uma série de aplicações.

Ricardo Leite, da Neoenergia: “Com uma rede própria temos que maximizar todo o ganho”. Foto: divulgação

“Com uma rede própria temos que maximizar todo o ganho. Se conectar somente o medidor não tenho retorno sobre o investimento. Preciso usar para automação da rede elétrica, para comunicação com equipes de campo por dados ou voz, para conectividade de outros equipamentos, como óculos de realidade aumentada, drones e câmeras em subestações. Queremos explorar ao máximo. Só assim viabilizamos uma estrutura própria”, explica Ricardo Leite, superintendente de smartgrids da Neoenergia.

Mas Gouvêa, da TIM, lembra que nem toda empresa tem capacidade técnica para cuidar de uma rede privada móvel. Para que essa tecnologia chegue a empresas de porte médio e até pequenas no Brasil, as operadoras tradicionais se farão necessárias. “Fazer uma rede móvel privada por conta própria pressupõe que você tenha conhecimento e capacidade para operá-la. Quantas empresas têm essa capacidade e conhecimento? E dinheiro para investir em uma operação em uma área que não é o seu core? Existem no Brasil entre 6 e 7 milhões de empresas. Como vamos endereçar as necessidades das pequenas e médias?”, questiona.

Privadas ou privativas, independentemente de como forem chamadas, essas redes móveis com dedicação exclusiva vão ganhar tração ao longo dos próximos anos no Brasil. E, ao que tudo indica, as mais diversas variações de arquitetura de rede, modelos de negócios, faixas de frequências e aplicações vão coexistir para atender a essa demanda.

Fórum de Operadoras Inovadoras

Haverá um painel sobre o mercado brasileiro de redes privadas móveis no 5º Fórum de Operadoras Inovadoras, evento organizado por Mobile Time e Teletime nos dias 5 e 6 de abril, no WTC, em São Paulo. Participarão desse painel: André Martins, CEO da NLT; Carlos Roseiro, diretor de soluções integradas da Huawei; Diego Aguiar, diretor de operações da Telefónica Tech/Vivo Empresas; e Ricardo Leite, superintendente de smartgrids da Neoenergia.

O evento contará ainda com painéis sobre novos entrantes em 5G; MVNOs; e diversificação dos negócios de ISPs; além de palestras sobre IoT e outras tendências em redes de telecom. A agenda atualizada e mais informações estão disponíveis em www.operadorasinovadoras.com.br