[ATUALIZADO em 21 de outubro às 7h39, com o comentário de Patrícia Peck] O relatório final da CPI da Pandemia, apresentado na terça-feira, dia 20, pelo relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL) trouxe, como proposição legislativa, projetos de lei que pretendem coibir a prática de disseminação de fake news no Brasil. Entre os pontos mais polêmicos estão a restrição de uso de bots no Brasil, além da exigência do CPF para identificação de todos os usuários das redes sociais. O texto também prevê a detenção de quem criar ou divulgar notícias falsas, com penas que vão de 6 meses a 2 anos de prisão. Os artigos alteram o Marco Civil da Internet, e também o Código Penal.

A desinformação na pandemia ocupou 212 páginas do relatório. Como resultado do estudo e do detalhamento de como as fake news contribuíram para aumentar o número de vítimas fatais da Covid-19 no País, com a participação ativa do Presidente da República, a CPI propôs o que chama de aperfeiçoamento da legislação. “Diante do exposto e das condutas criminosas de desinformação de agentes públicos e privados, constatou-se a ausência de uma tipificação penal para punir de forma satisfatória as pessoas que divulgam informações falsas”, diz o texto. “Espera-se que condutas de criação, disseminação e impulsionamentos automatizados de notícias falsas passem a ser tipificados e imponham penas capazes de coibir a prática criminosa de desinformar para obter ganhos financeiros, pessoais ou políticos. Afinal, está mais do que comprovado que fake news matam.”

Bots

Em um dos PLs propostos, há o seguinte trecho sobre o uso de bots:

§ 6o Somente será permitido o uso de conta automatizada que seja claramente identificada como tal.
§ 7o Não será permitido o uso de contas automatizadas para simular comportamentos humanos nas redes sociais, tais como escrever, publicar ou compartilhar mensagens e interagir com usuários.

O artigo 6 do projeto de lei exige que bots sejam identificados como tais. Mas o artigo 7 dá margem à interpretação de que qualquer bot que simule comportamento humano seja proibido – o que poderia atingir bots como Magalu e BIA. Esse é o entendimento de Carlos Affonso Souza, professor da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e diretor do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade): “Os conceitos foram redigidos de forma pouco apurada. O que parece aqui é que tentam evitar que o usuário não seja enganado por um bot. Mas a redação, por ser abrangente, pega tudo. Estão confundindo contas falsas automatizadas com bots”.

Rafael Pellon, advogado especializado em direito digital e sócio do escritório Pellon de Lima Advogados, entende de outra forma. Para ele, a proibição seria apenas aos bots que não se apresentem como tal. “A intenção, pelo que lembro das discussões, é não ter conta automatizada que finja que é gente. Mas o texto está mal redigido. É uma proposta, ainda vai para comissões e a redação será aperfeiçoada”, comentou, em conversa com Mobile Time.

“Entendo que o propósito da redação do PL é o de proibir apenas os bots que não se identificam como tal. Seria descabida a proibição em âmbito genérico e abrangente a todos os bots. Mas de fato há necessidade de vincular a redação do parágrafo 7º ao parágrafo 6º para evitar a interpretação em separado ou de forma isolada. A redação do parágrafo 7º não foi feliz, pois a necessidade é de que haja transparência e não vedação de uso de tecnologia. O usuário precisa saber que está interagindo com um bot. O parágrafo 7º teria que ter escrito ‘não será permitido o uso de contas automatizadas que não tenham sido claramente identificadas cumprindo com principio de transparência aos usuários para simular comportamentos humanos’, ou seja, ter sido muito mais especifico”, argumenta Patrícia Peck, CEO e fundadora do escritório Peck Advogados, corroborando com a mesma interpretação de Pellon.

Para Peck, se o texto for aprovado com a redação atual, prejudicará o funcionamento de bots que hoje prestam serviço essencial de atendimento aos usuários, ainda mais nesse contexto pós-pandemia. “Logo sim, faz-se necessária um pequeno ajuste para evitar uma medida que possa prejudicar todo o avanço de inovação trazido e os próprios usuários”, conclui.

Fake news

Souza, do ITS, também chama a atenção para o problema de definições quando o texto fala em “notícias falsas” ou ainda “corromper gravemente a verdade”. O trecho do relatório referido por ele é o seguinte:

Art. 288-B. Criar ou divulgar notícia que sabe ser falsa para distorcer, alterar ou corromper gravemente a verdade sobre tema relacionado à saúde, à segurança, à economia ou a outro interesse público relevante.

“Se o objetivo é tirar a desinformação do ar, ela nem sempre vem como notícia. Nem tudo o que desinforma aparece como produto jornalístico. Até mesmo discursos por parte de autoridades não são notícias e desinformam. E termos abstratos como ‘corromper gravemente a verdade’? Como um magistrado vai interpretar isso? A redação acabou sendo falha”, avalia.

Falta de debate

Apesar da boa intenção do relatório, especialistas também se queixaram da falta de um debate aprofundado sobre o tema, incluindo a mudança do Marco Civil da Internet, que foi amplamente discutido. O PL 2630, o chamado PL das Fake News, prestes a ser publicado, é um dos projetos que transitam pela Câmara e que está há meses sendo estudado.

Um dos pontos que não levou em conta os debates já feitos no Congresso Nacional foi a exigência de CPF para quem usar as redes sociais. O relatório diz:

“Art. 11-A. O provedor de rede social deverá garantir a identificação inequívoca do usuário que fizer publicação ou divulgação de mensagem em sua aplicação, quando essa mensagem for transmitida ou recebida por usuário localizado em território nacional. § 1º A identificação do usuário conterá, no mínimo: I – se pessoa física, nome completo, data de nascimento e número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Economia; II – se pessoa jurídica, razão social e número de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Economia, acrescido dos dados referidos no inciso I do § 1º deste artigo relativos ao responsável pela conta.

“É uma pena que, no combate à desinformação, os senadores se pautem por assuntos já superados, como o CPF para identificar usuários das redes. Este é um tema que entra ano e sai ano aparece no Congresso. É um tema que já foi abandonado e superado, pois esta é uma solução que traria efeitos muito profundos na maneira pela qual nos expressamos e usamos a rede”, aponta Souza.

Bia Barbosa, pesquisadora e representante do terceiro setor no CGI.br, concorda com os problemas na redação do relatório. Ela publicou em seu Twitter: “A CPI cumpriu um importantíssimo papel pra democracia e contra as máquinas de desinformação, que ajudaram a matar milhares de brasileiros na pandemia. Mas dará um tiro no próprio pé se embarcar nas infelizes propostas desses PLs.”

O senador Renan Calheiros afirmou que está disposto a receber sugestões para “alterar e melhorar” o texto até a votação, que está prevista para a próxima terça-feira, 26.