Nesta semana, a maioria dos ministros do STF classificou o artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI) como inconstitucional – seja parcialmente ou em sua totalidade. Mobile Time ouviu especialistas no tema e todos apontam que o Supremo Tribunal Federal deveria ter deixado ao Poder Legislativo a tarefa de atualizar a regulamentação sobre a responsabilidade das plataformas digitais. Os quatro também apontam riscos à liberdade de expressão, já que as big techs ficarão mais conservadoras e restritivas, removendo conteúdos para se protegerem de possíveis ações no Judiciário.
Outro ponto avaliado pelos advogados especializados em Direito Digital foi a possibilidade de atribuir à Procuradoria-Geral da República (PGR) a fiscalização das redes – tópico também alvo de críticas, por violar atribuições constitucionais do órgão.

Patricia Peck. Foto: divulgação
Para Patrícia Peck, sócia fundadora do escritório Peck Advogados, o debate passa pela proteção dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal. “A experiência nestes mais de 10 anos de aplicação do artigo 19 do Marco Civil da Internet, associada à própria mudança da tecnologia e do modelo de negócios das plataformas, criou uma distorção que estimula a monetização de conteúdos ilícitos em detrimento da proteção da dignidade humana”, diz. A advogada lembra que a responsabilidade da mudança é do Legislativo, mas, com a demora do Congresso, o STF acabou assumindo “para si o papel de suprir as lacunas e de atualizar a aplicação do MCI. Qualquer solução que seja dada trará efeitos”.
Rafael Pellon, sócio-fundador do Pellon de Lima Advogados e consultor jurídico do MEF, é categórico: o artigo 19 é constitucional, sim, e o Judiciário é a instância para se determinar a responsabilidade das plataformas e modular as penalidades quando há infração.
“Vejo com muita cautela e reserva a determinação de um sistema de responsabilidades em que se privatize a obrigação de decisão para órgãos de governo que não têm esta função em lei específica, muito menos por entes privados como empresas de aplicações de internet, que terão uma função ingrata de decidir quem está certo em disputas complexas como crimes contra a honra e disputas sobre direito de liberdade de expressão e outros”, afirma.

Rafael Pellon. Foto: divulgação
Para Pellon, o cenário atual vai obrigar as empresas “a serem mais conservadoras, com prejuízo ainda incerto para a liberdade de expressão e confronto de ideias no país, sem necessariamente melhorar o ambiente de disseminação de desinformação, que migrará para redes de mensageria e outros canais de distribuição de conteúdo”.
Já para Luis Fernando Prado, sócio do Prado Vidigal Advogados, especialista em direito digital, é cedo para mensurar todos os reais impactos do julgamento do STF, “pois ele ainda está longe de terminar”.
Prado lembra que cada ministro desenha o seu próprio contorno sobre o artigo 19 – mesmo que votando pela inconstitucionalidade parcial ou total – e, por isso, não é possível saber “o que será fixado pelo STF em tese de repercussão geral em termos de qual tipo de conteúdo de usuários podem ensejar a responsabilização das plataformas independentemente de descumprimento de ordem judicial para remoção, nem sobre os deveres dela na identificação e remoção desse tipo de conteúdo.”
O ideal para Flávia Lefèvre, advogada especialista em telecomunicações, direitos do consumidor e digitais, e parte do Conselho Consultivo do Núcleo de Pesquisa, Estudos e Formação, é que a lógica do regime de responsabilidade do MCI seja mantida uma vez que “há risco concreto de derrubadas arbitrárias por parte das plataformas, dado o grau de subjetividade destas hipóteses e do fato de que as plataformas vão orientar seus algoritmos para que corram o menor risco possível de responsabilização”.
Lefèvre aponta o voto do ministro André Mendonça como o “mais equilibrado” por manter o princípio de governança do artigo 19, reconhecido internacionalmente, que preza pela liberdade de expressão e pelo “impedimento à censura para orientar regulações, sob pena de colocarmos em risco a democracia”, explica.
Mas a advogada realça que a falta de responsabilização das plataformas não acontece por conta do artigo 19, “mas à omissão dos órgãos públicos. O fato de as empresas não estarem respondendo hoje por danos causados a crianças e adolescentes, às eleições e às instituições democráticas do país se deve muito mais à inação dos poderes públicos competentes do que à redação atual do Marco Civil.”
Sobre a PGR como entidade fiscalizadora
Durante o voto de Flávio Dino, o ministro do STF sugeriu que a Procuradoria-Geral da República fiscalizasse as plataformas digitais para verificar se estão cumprindo com a lei. O debate atraiu outros ministros da Corte, mas os especialistas ouvidos por este noticiário acreditam que a PGR não deve assumir como o órgão fiscalizador das plataformas digitais. Pelo menos não sozinho.
Seria “inviável”, de acordo com Peck. E não há base legal para que a PGR assuma essas funções.
“A fiscalização das plataformas por parte da PGR poderia ser tecnicamente muito desafiadora, especialmente em relação à vastidão de conteúdo online e à rapidez com que ele é disseminado”, comentou Peck.
“No tocante à PGR, entendemos que não há lei que determine que o órgão assuma esta função, o que seria dever do Congresso Nacional, ouvindo todos os interessados em criar formatos para avaliação e auxílio ao Judiciário”, afirmou Pellon.

Luis Fernando Prado. Foto: divulgação
Prado também bateu na mesma tecla que os demais. “A Constituição Federal estabelece que a PGR atua na defesa da ordem jurídica e dos direitos fundamentais, não como órgão regulador de setores econômicos ou tecnológicos. Inclusive, ainda não há consenso regulatório sobre os ônus e bônus de se ter uma autoridade centralizando o tema de regulação e fiscalização de plataformas no Brasil, sendo que não deveria o Judiciário atropelar essa discussão que já acontece no âmbito Legislativo”.
Lefèvre, no entanto, considerou a PGR como “uma boa opção”, mesmo que não seja atribuição do STF definir um órgão de supervisão.
“Mas concordo também com o ministro Barroso quando, no julgamento, ele fez uma ponderação muito importante: ‘Só não tenho muita simpatia pela palavra autoridade, no sentido do poder público interferindo na liberdade de expressão…a ideia é criar um órgão da sociedade civil – com participação do governo, da sociedade, das empresas – porque o estado imiscuído em liberdade de expressão não costuma acabar bem’”.
Relembre o caso da polêmica em torno do artigo 19
O julgamento é centralizado em dois recursos extraordinários com repercussão geral a partir de dois casos concretos: no primeiro, o Facebook questiona decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) que determinou a exclusão de um perfil falso da rede social; no segundo, o Google contesta decisão que responsabilizou a plataforma por não excluir do Orkut uma comunidade criada para ofender uma pessoa e determinou o pagamento de danos morais.
A partir desses dois casos, discute-se a responsabilidade civil das plataformas de internet por conteúdo de terceiros e a possibilidade de remoção de material ofensivo a pedido dos ofendidos, sem a necessidade de ordem judicial.