Não causou espanto a presença de militares na diretoria da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) – anunciada na noite de quinta-feira, 15. Mas a maioria de especialistas ouvidos por Mobile Time entendem que não precisava de tantos. Ao todo são três militares: Waldemar Gonçalves Ortunho Junior, atual presidente da Telebras e escolhido para ser o diretor-presidente da Autoridade; o coronel Arthur Pereira Sabbat, especialista em Segurança da Informação, com conhecimento em segurança cibernética, proteção de dados e gestão de risco; e Joacil Basilio Rael, graduado em Engenharia de Computação pelo Instituto Militar de Engenharia e doutorado em Ciências da Informação pela Universidade de Brasília. Os outros membros são Miriam Wimmer, atual diretora de políticas para telecomunicações e acompanhamento regulatório no Ministério das Comunicações e Nairane Farias Rabelo Leitão, advogada sócia do escritório Serur Advogados onde é responsável pelas áreas de Direito Regulatório e de Privacidade e Proteção de Dados.

Patrícia Peck, advogada e head de direito digital do escritório PG Advogados

Segundo Patrícia Peck, advogada e head de direito digital do escritório PG Advogados, o perfil militar da diretoria é um ponto contrário à diversidade – que deveria ser priorizado pela ANPD. “Dá uma impressão de uma visão mais voltada para as questões de segurança cibernética e segurança nacional – que são alguns tópicos que essa legislação toca – mas não é tudo que deve ser tratado ali. A diretoria deveria prever uma diversidade, alcançar visões distintas de vários setores econômicos: visão da área pública, visão da área privada, do setor mais acadêmico. Acabou tendo uma concentração excessiva de determinado setor pelo perfil da diretoria, com três militares, com formação mais técnica de cibersegurança”, explicou em entrevista para Mobile Time.

Peck complementa: “Há uma percepção de uma autoridade de linha dura, de fiscalização e penalização. Poderia ser uma autoridade mais no perfil educativo, próximo de setores econômicos da sociedade civil. Ficou com um perfil mais militar, mesmo”.

Flávia Lefèvre Guimarães é representante do coletivo Intervozes e da Coalizão Direitos na Rede

A advogada especializada em direito digital e do consumidor e representante do coletivo Intervozes e da Coalizão Direitos na Rede, Flávia Lefèvre Guimarães, entende que, com exceção de Miriam Wimmer, os outros quatro membros estiveram distantes até então das discussões sobre as criações da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e da ANPD. “Tirando a Miriam, não conheço as outras pessoas”, disse a advogada.

Outro ponto salientado por Guimarães é que Wimmer possui o menor dos mandatos entre os cinco membros, de dois anos. Vale lembrar aqui: o de Ortunho é de seis anos; de Sabbat, cinco anos; Rael, quatro anos; e da advogada Nairane Farias Rabelo Leitão, três anos.

Peck lembra que se a intenção é de desvincular a ANPD da Presidência da República em dois anos – como prevê o texto de criação da Autoridade –, os mandatos mais extensos dos militares podem dar uma ideia contrária. “Dois dos membros são oriundos da Telebras (Ortunho e Rael). O Sabbat já tinha experiência no GSI (Gabinete de Segurança Institucional), vinculado à Presidência da República, então, se há uma intenção da autoridade em alcançar uma autonomia maior, esses mandatos de maior duração indicados pelo presidente, já demonstram que não”.

Para Christian Perrone, pesquisador sênior da área de direito de tecnologia do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio), a presença de três militares aponta para o modo como o governo acredita que a ANPD deve seguir. “Eles entendem que existe um componente de segurança significativo e que há uma vinculação com a preservação de estruturas no País”, explicou em entrevista para Mobile Time.

União Europeia e OCDE

Perrone alerta que a presença forte de militares e uma possível falta de diálogo pode impactar em futuros acordos e adequações com a União Europeia e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entidades que prezam pela autonomia e pela independência da Autoridade. “Ainda que a lei garanta a autonomia técnica da ANPD, o fato de ela estar vinculada à presidência gera algumas dúvidas sobre o quão autônoma efetivamente deve ser a autoridade”, explicou em entrevista para Mobile Time. “E, com três militares, essa dúvida parece ganhar mais peso. A lógica hierárquica militar passa a impressão de uma vinculação ainda mais e uma menor autonomia. Isso pode pôr em discussão e diminuir as chances do País de entrar para a OCDE. E a União Europeia pode achar que não há garantias de autonomia suficientes”, resume o pesquisador.

Segurança nacional x proteção pessoal

A compreensão sobre o trabalho a ser feito pela Autoridade é outra questão que preocupa a advogada representante do coletivo Intervozes e da Coalizão Direitos na Rede. O conhecimento dos nomeados na área é importante e bem-vindo, mas é preciso entender qual o ponto de vista dessas pessoas com relação à proteção de dados.

“Entender do assunto é importante, e parece que entendem. Agora, é um assunto com diversos vieses. A gente tem que lembrar que a LGPD é uma lei de proteção aos titulares dos dados pessoais. E me parece que a experiência dos militares indicados está mais voltada para questão de segurança pública. É preciso tomar muito cuidado para que o viés dessas pessoas indicadas não terminem contaminando o espírito da lei, que é de proteção do cidadão e não é de segurança nacional. Isso pode comprometer como a agência vai funcionar”, explicou a Guimarães.

Visão do mercado

Rodolfo Fucher, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Softwares (Abes)

O mercado, por outro lado, vê com alívio a nomeação da diretoria da ANPD, um pedido feito há tempos pelas empresas que estavam com a LGPD em vigor, mas sem a Autoridade.

Para Rodolfo Fucher, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Softwares (Abes), a nomeação da diretoria da ANPD foi bastante positiva. A entidade vinha trabalhando com o governo para a criação da Autoridade o quanto antes e para que se apresentassem logo os nomes do corpo da diretoria. “A reação é extremamente positiva porque estávamos cobrando do executivo. E, pelos nomes, não temos familiaridade com todos eles, mas de maneira geral é positivo, até no sentido da diversidade de gênero, com a presença de (duas) mulheres, mas também pelo conhecimento e pela experiência dessas pessoas. Essa mistura – temos três militares que trazem bagagem na área de segurança da informação e background em segurança jurídica e tecnológica, além da Miriam (Wimmer), que tem um diálogo forte com o setor”, resumiu Fucher.

O presidente da Abes aponta que agora a diretoria – se aprovada no Senado – precisará formatar a Autoridade o quanto antes para tratar das regulamentações que ainda estão pendentes. Fucher sinaliza em especial as especificações para micro e pequenas empresas, que deverão ter um tratamento diferenciado. Sua preocupação com relação a essa parte específica acontece porque 77% dos associados à Abes são PMEs.

Vale lembrar que os diretores escolhidos pela presidência da República devem ser sabatinados pelos senadores ainda na segunda-feira, 19, às 9h.