O mundo chegou a um ponto de inflexão na relação da humanidade com a inteligência artificial (IA), que está se tornando cada vez mais parecida conosco, seres humanos. Em algumas profissões, a velocidade de adoção de chatbots e outros robôs que automatizam funções exercidas por pessoas está aumentando. Com a substituição em massa de humanos por máquinas, é preciso que se inicie um debate sobre a tributação de bots – ou será tarde demais. É isso o que pensa a advogada especialista em direito digital Patricia Peck.

“Não vai ter muito como fugir. Ou seja, é mais uma questão de pensar em como fazer do que dizer que não vai chegar esse momento. Como tributar a tecnologia de uma maneira que não iniba a inovação nem a produtividade?”, questiona.

Patrícia Peck

A advogada Patrícia Peck. Foto: divulgação

A IA atingiu um patamar nunca antes visto. A popularização do ChatGPT, da OpenAI, evidenciou o fato de que a tecnologia se tornou capaz de atividades que há alguns anos julgaríamos complexas demais, como escrever um artigo científico ou defender um réu no tribunal. Além disso, a explosão da inteligência artificial mostra que a tecnologia está se barateando, podendo ser adotada em áreas que não tinham capital para isso, até por empresas pequenas.

A redução de custos é a principal motivação de empresas que adotam chatbots, pois, diferentemente de um empregado, não há imposto sobre o trabalho exercido pela tecnologia ou sobre a renda gerada por ela. Além disso, um robô é capaz de fazer o trabalho de várias pessoas ao mesmo tempo. A massificação da IA e a consequente substituição de seres humanos por bots poderá ocasionar grandes demissões, que não necessariamente corresponderão à abertura de novas vagas em outras áreas, levando ao desemprego.

Outro impacto econômico da substituição de humanos por chatbots está ligado à lógica da previdência social. As contribuições de quem está trabalhando é que pagam o benefício de quem está aposentado. É por isso que, em países no qual há envelhecimento populacional, às vezes, a conta não fecha. Se grande parte dos trabalhadores forem substituídos por máquinas, quem vai contribuir para sua previdência, futuramente?

Debate iminente

Peck lembra que o mundo já passou por diversas revoluções que causaram impactos econômicos, como a agrária, a industrial e a informacional. Há pelo menos 30 anos vivemos uma economia digital. O modelo de riqueza está mudando. Agora, chegamos possivelmente à revolução da IA, ainda que as principais consequências dela sejam sentidas somente daqui a algumas décadas. Em todos esses ciclos, houve quebras de paradigmas que trazem questões relacionadas ao capital, ao trabalho e à dinâmica do Estado, que depende de arrecadação de impostos.

Robert J. Shiller, economista laureado com o prêmio Nobel, e Bill Gates, um dos homens mais ricos do mundo, fundador da Microsoft, são duas pessoas que endossam a ideia de que a robotização seja tributada, caso implique na substituição de mão de obra humana. Mas eles não são os únicos. Ideias semelhantes já ecoaram entre figuras políticas de diferentes países, principalmente do G20, como Estados Unidos, Reino Unido e França.

A ideia de máquinas substituindo os seres humanos não é nova. Pelo menos desde a revolução industrial isso é uma questão. Agora, imagine milhões de clientes de um banco sendo atendidos por um único chatbot. Há um estudo, por exemplo, que mostra que robôs tomarão um terço dos empregos britânicos até 2030.

Solução

Dada a iminência do rombo na previdência e do desemprego em massa, ocasionada por robôs inteligentes, qual poderia ser a solução tributária? Este é um debate complexo, que atravessa diversas questões socioeconômicas. Cada setor da sociedade e perfil profissional poderão ser afetados de maneira diferente pelo avanço da IA.

“Nós ainda não temos essa resposta. Mas que precisamos dialogar, já, e debater sobre essas questões é extremamente importante e necessário. Se não, você não consegue ter tempo de estruturar uma regulamentação, de apresentar uma política pública e de implementar isso de uma forma progressiva, paulatina, para não gerar um impacto repentino. Tem que ser feito de uma forma escalonada, acompanhando esses efeitos sociais e econômicos. Acho que o último que se mexer é aquele que acaba sofrendo todo o resultado dessa equação”, diz Peck.

Como parte de uma revisão das suas leis tributárias, a Coreia do Sul promulgou, em 2017, provavelmente o que pode ser considerada a primeira lei do mundo para taxar robôs – ou quase isso. Em vez de cobrar robôs diretamente, o país asiático optou por um outro caminho, a fim mitigar os impactos da substituição de humanos na sua economia: reduziu incentivos tributários para investimentos em máquinas de automação que haviam sido introduzidos anteriormente para estimular a produtividade.

Brasil

A economia digital é relevante para o Brasil, que é conhecido como early adopter de novas tecnologias. O País é visto como um mercado importante para as big techs. Além disso, em comparação com algumas outras nações, o preço de nossa mão de obra é mais elevado, o chamado “Custo Brasil”. É por isso que, especialmente aqui, reduções de custo são vistas com bons olhos. Inclua-se na equação o fato de a população brasileira estar envelhecendo.

Mesmo que o Brasil comece a sentir os impactos um pouco depois que os países do G20, Peck considera importante que comecemos a debater sobre o tema. Há alguns anos essa discussão poderia até não ser pertinente, porém, principalmente depois da pandemia, a digitalização se acelerou por aqui, onde a adoção massiva de IA também é iminente.

“É importante se criar um grupo de trabalho que traga setores envolvidos para se fazer um estudo de impacto. Acho que isso é um assunto extremamente importante para ser adotado aqui como pensamento da nossa Estratégia Nacional de Inteligência Artificial. Ela precisa se desdobrar e enxergar esses efeitos e impactos. O Brasil precisa acompanhar o debate internacional e estar dentro disso”, afirma a especialista.

Para ela, não é prematuro debater isso no País. O pior cenário seria não começar a tratar do assunto agora e termos uma surpresa daqui a algumas décadas. Com o debate, poderá haver colaboração entre diferentes setores envolvidos, que podem influenciar o rumo das decisões e levar a melhores abordagens.

“Não seria bom para quem está fazendo um investimento em IA saber qual tipo de regulamentação futura pode surgir? Se pode ter que haver algum tipo de taxa, imposto, plano de substituição ou reposição de empregos, caso eu venha a contratar mais bots do que pessoas?”, comenta.

Benefícios

Nos próximos anos, o Brasil tem oportunidades para discutir isso. Está em debate uma possível reforma tributária, que poderia abordar essa questão dos chatbots e outras particularidades da indústria digital. Em dezembro de 2022, a comissão que trata do Marco Regulatório da Inteligência Artificial entregou seu relatório final ao Senado. Peck acredita que o assunto deve andar ainda em 2023.

“É um assunto desafiador. Temos que conseguir avançar e demonstrar como isso poderia se reverter de forma benéfica para a sociedade. A grande questão é mostrar na equação que a empresa conseguiria ainda diminuir custos sem que no futuro gerássemos um comprometimento de empregabilidade e de previdência”, opina. “Qualquer tipo de nova taxação sofreria resistência. Teria que se entender o porquê e para quê? Tem que haver um amadurecimento do que significa uma taxação relacionada a essa economia digital.”

Uma das principais críticas à tributação de robôs é que isso poderá desestimular investimentos. Se foram criados impostos excessivos na tecnologia, isso diminuirá a competitividade, afetando também a inovação. Para a especialista, há alternativas, mas essa questão também precisará ser levada em conta nas discussões futuras.

“Lógico que você tem que poder estimular. Toda vez que você pensa alguma questão em tributo, você também pensa algum estímulo para aquele que gerar empregos, isenção para as startups e pequenas empresas etc. A regulamentação precisa estimular o ambiente de inovação, mas também temos que conseguir enxergar esses reflexos de médio e de longo prazo e acompanhar a tendência internacional”, sugere.