No dia 23 de abril de 2014, a então presidente do Brasil, Dilma Rousseff, sancionou o Marco Civil da Internet (MCI), legislação que rege o ambiente digital no País e que foi construído ao longo de sete anos. O MCI veio para promover princípios, direitos e garantias para o uso da Internet e para isso se baseia nos seguintes pilares: privacidade, proteção de dados, liberdade de expressão, neutralidade de rede e responsabilidade dos provedores. Nesta terça-feira, 23, a lei 12.965/2014 completa 10 anos e Mobile Time ouviu especialistas no assunto para entender sua aplicabilidade nos dias atuais, sua importância ao longo dessa primeira década em vigor, se a regulação está ou não datada e o que falta ser feito.

No último ano, discutiu-se sobre a validade de seu artigo 19, que trata da responsabilidade das plataformas digitais. Em março do ano passado, o STF promoveu dois dias de debates sobre a legitimidade do artigo 19, que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de Internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. No primeiro dia, as plataformas defenderam o artigo e que elas removem proativamente conteúdos ilícitos. No segundo, alguns especialistas afirmaram que o trecho seria inconstitucional. No fim, o placar ficou: 22 a favor; 17 neutros; e oito contra o artigo 19.

Mas antes de apresentar as visões dos especialistas, vamos entender um pouco da sua história.

Como começou

O MCI é uma reação à Lei de Cibercrimes, de 2003, de autoria do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG). À época, recebeu a alcunha de “AI-5 digital”. Em maio de 2007, Ronaldo Lemos, jornalista e advogado especialista em direito digital, propôs em um artigo publicado no site UOL que se fizesse um marco regulatório civil para definir regras e responsabilidades para usuários, empresas e demais instituições que acessam a web para, então, definir as leis anticrimes.

Dois anos depois, o então presidente Lula pediu para que o Ministério da Justiça, comandado por Paulo Barreto, propusesse uma legislação para a Internet. Naquele momento, foram realizados consultas públicas e debates com diferentes setores – academia, especialistas, sociedade civil, mercado, além do legislativo, executivo e judiciário – e fez-se um rascunho do Marco Civil da Internet.

Em 2011, o projeto de lei começou a tramitar nas casas legislativas e, no dia 23 de abril de 2014, Dilma Rousseff assinou sua sanção.

“Naquela época a ideia que existia era a criação de uma lei criminal para a Internet, que tinha o potencial de tornar ilegais vários usos da rede. Foi nesse momento que surgiu a ideia de que a primeira lei sobre a rede no País deveria ser uma lei civil, que protegesse direitos como a liberdade de expressão, a privacidade, a soberania nacional etc”, lembra Ronaldo Lemos para Mobile Time.

Sua importância para a época

Christian Perrone

Christian Perrone, head do ITS Rio. Foto: divulgação

Christian Perrone, advogado e head de direito e govtech do ITS Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade), avalia o Marco Civil da Internet como uma mudança de pensamento sobre como regular a Internet no Brasil. “Até os anos 2000, o pensamento era de que a Internet deveria ser regulada de maneira penal ou de maneira criminal. E o marco veio como uma mudança dessa visão. Primeiro, fazer uma regulação sob o ponto de direitos e depois pensar em sanções. A ideia foi colocar o cidadão e a cidadã como elemento central. Como ela deveria ser estruturada pensada para as pessoas”, diz.

Perrone também acredita que o MCI foi um marco histórico de pensar conjuntamente com diferentes setores “a Internet pela Internet”. O Marco Civil da Internet foi criado a partir de audiências públicas e consultas “e o sistema de estrutura e sua própria linguagem começaram com uma visão participativa, multissetorial. E isso mudou a estrutura de participação e de como regular a tecnologia”, resume.

Patrícia Peck, advogada especialista em direito digital e CEO do escritório Peck Advogados, também acredita que a importância do MCI está justamente na sua criação participativa entre os diferentes atores. “Ele foi considerado uma lei extremamente inovadora e contemporânea para o momento em que precisávamos de regras claras sobre direitos e deveres no ambiente digital, principalmente com exigências de transparência de privacidade e de neutralidade na rede”, complementa.

Flávia Lefèvre, advogada especialista em direito do consumidor, lembra que o MCI chegou para somar às garantias do Código de Defesa do Consumidor no que tange a relação contratual entre provedores e usuários.

Patricia Peck

Patricia Peck. Foto: divulgação

“Além disso, o MCI trouxe para o âmbito regulatório o caráter universal (art. 4º) e essencial para o exercício da cidadania (art. 7º), o que implica no surgimento de outros direitos conexos, como é o caso da garantia de continuidade da prestação do serviço (inc. IV, do art. 7º), o direito ao consentimento expresso e informado para coleta e o uso dos dados pessoais dos internautas (inc. IX, do art. 7º) e a proteção da privacidade e das comunicações (art. 8º), assim como deveres para os agentes públicos formuladores de políticas públicas (art. 1º e 24 e seguintes) das três esferas da federação, no sentido de promover a inclusão digital e o acesso não discriminatório”.

Outra garantia fundamental foi a obrigatoriedade para que os provedores de conexão garantissem a neutralidade da rede, ou seja, não discriminassem tráfego de dados dos pacotes de conteúdo, origem, destino, serviço, terminal ou aplicação, completa Lefèvre.

Discussão sobre o artigo 19 e se a lei está datada

Mobile Time perguntou aos especialistas se seria necessária uma atualização do artigo 19 do MCI. O item prevê que os provedores de aplicações (ou seja, as grandes plataformas como Facebook, Google, TikTok, dentre outros) só respondam civilmente quando descumprirem uma ordem judicial para a remoção de um conteúdo. O fundamento do artigo é a proteção à liberdade de expressão. Não há consenso sobre o tema e as respostas foram variadas.

Flávia Lefèvre

Flávia Lefèvre. Foto: divulgação

Para Lefèvre, a preservação do artigo 19 é fundamental para o MCI. Mas o Marco Civil deve ser aplicado como um todo, em especial naquilo que trata da disciplina do uso da Internet, estabelecendo princípios, estando entre eles a “responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei”, como está no seu texto. “Mas, apesar da clareza solar deste dispositivo, há uma resistência de se fazer a interpretação sistemática dos dois dispositivos que tratam de hipóteses distintas de responsabilidade, insistindo-se na tese descabida de que as plataformas só responderiam na hipótese do art. 19, que aborda a responsabilidade específica quanto a conteúdos postados pelos usuários. Ou seja, tem-se ignorado a responsabilidade das plataformas quanto às suas atividades de moderação de conteúdos, como impulsionamento, recomendação, redução de alcance de conteúdos e contas, o que tem sido muito confortável para estas empresas e muito danoso em larga escala para a sociedade brasileira”, alerta.

Peck pensa diferente. E acredita que é preciso evoluir com o artigo 19, que não comportaria mais os atuais modelos de negócios praticados pelos provedores. “Acredito que ele reflete um modelo de negócios de provedores de aplicação principalmente da época do início dos anos 2000”, diz. Peck lembra que à época da sanção do MCI, a Internet ainda não era algorítmica e, com o tempo, “há uma mudança na apresentação da informação para uma informação que vai atrás do usuário”. Assim, os custos aumentam para garantir as aplicações de Internet, a segurança e a monetização das plataformas e surgem novos modelos de negócio. “Tem um custo elevado para garantir toda a estrutura de aplicações de Internet, assim como segurança também é um investimento caro. Logo, a partir do momento em que a monetização por parte das plataformas vêm de modelos novos e algoritmos usando hashtags, curtidas, há uma necessidade, sim, de revisitar e atualizar o artigo 19″, avalia.

Para Lemos, o artigo 19 não deve ser revisitado, mas deve funcionar como regra geral. Porém, não impede que se criem mais exceções ao artigo. “Hoje há exceções como a pornografia de vingança. A regra geral permanece, mas com relação a certos tipos de conteúdo, a exceção é estabelecida. O caminho menos danoso é manter o artigo 19 e, democraticamente – ouvindo-se a sociedade – estabelecer quais outras exceções devem ser criadas à regra”, explica.

Rafael Pellon, advogado especializado em direito digital, sócio-fundador do Pellon de Lima Advogados e consultor jurídico do MEF, aponta que depois de 10 anos seria importante revisitar e aprimorar alguns temas do MCI, “como a limitação de responsabilidade de plataformas, descrita no art. 19 e que poderiam ser discutidas e melhor detalhadas, aproveitando os casos recentes na Europa e EUA sobre as responsabilidades atuais das grandes plataformas online.”

Rafael Pellon

Rafael Pellon. Foto: divulgação

Pellon esclarece que o MCI não impede a responsabilização de plataformas de aplicações no Brasil, mas prevê sua responsabilidade por omissão. “O que o MCI impede no momento é que tais plataformas exerçam um poder de cuidado e fiscalização que talvez seja necessário no atual momento em que estamos, com a consolidação do uso da Internet nestas grandes plataformas, aumentando sua responsabilidade pelo discurso público e formatos de comunicação digital no País. É necessário modular este dever e atuação das plataformas com cuidado, para também não privatizarmos a avaliação e o julgamento do exercício de direitos no país, o que seria função primordial do Judiciário”, observa.

Perrone avalia que o MCI não está datado e que foi criado para durar por muitos e muitos anos. Porém, deve passar por atualizações porque outros problemas passaram a existir e precisam ser encarados. É o caso de questões sistêmicas, como a propagação de desinformação.

“No início, desinformação não era a principal discussão, mas sim moderação de conteúdo. Na época, não havia toda uma infraestrutura, uma máquina por trás para viralizar um conteúdo. Acho que há um espaço para discutir isso de forma regulatória, mas não significa modificar o MCI nem mesmo o artigo 19, pelo contrário. O artigo 19 e o MCI foram dois grandes ganhos, mas devemos pensar como isso pode ser ao mesmo tempo estruturado para permitir que diferentes setores lidem com a desinformação. Isso é uma atualização que deve ser feita, não necessariamente dentro do MCI, mas em normativas”, diz.

A obsolescência legislativa parece inevitável quando se trata de leis relacionadas ao mundo da tecnologia. Peck acredita que não seria diferente para o Marco Civil da Internet. A especialista vê uma necessidade de revisitar a lei periodicamente (a cada cinco anos, por exemplo) de modo a acompanhar a evolução da sociedade e da tecnologia. Para isso, aposta em melhores práticas de autorregulação regulada.

Discussão sobre direitos autorais

Para complementar o MCI, veio em 2016 a discussão da Lei Geral de Proteção de Dados, agregando regras sobre proteção de dados e privacidade. No entanto, os especialistas sentem falta da discussão de um terceiro tema: o direito autoral. Peck lembra que é urgente discuti-lo em tempos de inteligência artificial e que, por isso, o MCI pode, sim, ficar obsoleto. E Pellon afirma que este é um tema que entrou em pauta no Congresso, no ano passado, com a divisão do PL das Fake News, mas que logo em seguida foi retirado.

Perrone diz que o MCI “não viu o todo do espaço digital porque ele estava pensando sobre os grandes problemas que existiam na época”. E, ao longo desses 10 anos, outros problemas surgiram, assim como novas visões. “O MCI não entrou na discussão sobre direitos autorais. Esse é um ponto que deveria debater, ainda mais em um espaço com inteligência artificial”.

Vale lembrar que, durante as discussões sobre o PL 2630/2020, que pretende regular as plataformas digitais, a Câmara dos Deputados optou por excluir o trecho sobre direitos autorais, que acabou se tornando o PL 2370/2019, de autoria da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ).

Mas o que todos concordam é a importância do Marco Civil da Internet ao longo desses 10 anos e como ele mudou a forma de se legislar temas relacionados à tecnologia.